Elogio da inexistência
Roberto Pompeu de Toledo
Revista Veja
Com o exército perfilado sob as muralhas de Paris, Carlos Magno passava em revista seus paladinos. O imperador parava o cavalo diante de cada um e pedia que se identificasse. "Sou Salomon da Bretanha, sire", dizia um, levantando a viseira da armadura. "Ulivieri de Viena". dizia outro, repetindo o gesto. "Bernardo de Montpellier:" "Alardo de Dordona." "Namo da Baviera." Enfim, Carlos Magno aproximouse de um cavaleiro de armadura toda branca, muito bem conservada. "Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildivemi e dos Altri de Corbenu"az e Sura", anunciou-se o cavaleiro. O imperador estranhou. O cavaleiro não levantara a viseira. Perguntou: "Por que não mostra o rosto?". Nenhuma resposta. Carlos Magno insistiu: "Por que não mostra o rosto para o seu rei?". Saiu então uma voz da armadura: "Porque não existo, senhor". Assim começa o romance O Cavaleiro lnexistente do italiano Italo Calvino. Agilulfo não mentia. Triste e inapelavelmente, não existia. O imperador pôde comprová-lo o ao enfiar o rosto viseira adentro e verificar que reinava ali o mais completo vazio. Quem julgou que a história de Agilulfo tenha sido evocada a propósito da presidente eleita Dilma Rousseff acertou. Nunca se viu neste país um(a) presidente eleito(a) tão sumido(a). Presidentes eleitos costumam ser filmados, fotografados, perseguidos e festejados à exaustão. Muitos viajam para o exterior, entre a eleição e a posse, e a viagem é uma sucessão de históricos encontros, poses em paisagens de cartão-postal, entrevistas com perguntas em vários idiomas. Já Dilma ... Refugiou-se no esconderijo apelidado de Granja do Tono e de lá sai para raras e pontuais cerimônias em que entra muda e sai calada. Quando surge o anúncio de nomeação de algum ministro, não é ela, mas interposta pessoa quem o faz. Na trilha do cavaleiro Agilulfo, ela é a presidente eleita inexistente. Quem julgou, no entanto, que se evocou o cavaleiro de Calvino para diminuir a presidente eleita do Brasil enganou-se. Qu poderia Dilma fazer senão inexistir? Era o papel que dela se esperava, neste entreato, o único possível, e aquele do qual pode vir até a tirar algum proveito. Em tese, o (a) presidente eleito(a) é o sol que se levanta; o (a) que sai, o que se põe. A glória e a esperança próprias das auroras pertencem ao(à) primeiro(a). É a éle(ela) portanto que são devidas todas as homenagens. Ocorre que, neste caso particular, a tese inverteu-se. Temos um presidente em fim de mandato que reclama para si a totalidade das homenagens disponíveis. Até em cerimônia de entrega de troféus aos melhores jogadores do Campeonato Brasileiro de Futebol comparece, como ocorreu na semana passada. Cansa a assessoria com pedidos de inaugurações, incha a agenda de cerimônias destinadas a aclamá-lo, não dá folga aos holofotes. É um pato que se recusa terminantemente a mancar. Nesta circunstância, quem tem juízo que se acautele. Como desafiar um sol que, em aberto desafio às leis da astronomia, não aceita se pôr? Como celebrar o próprio triunfo se o outro não se cansa de lembrar (e com razão, embora o bomsenso e as boas maneiras recomendassem que não fosse tão efusivo a respeito) que o triunfo foi dele? O esconderijo é a resposta mais adequada à ocasião. A arte da inexistência, o exercício mais, recomendável. Acresce que Dilma é uma obra por fazer. Faltam-lhe o currículo e a biografia com que os presidentes eleitos costumam chegar a essa posição. No livro de Calvino, Carlos Magno pergunta a Agilulfo como pode servir-lhe, sendo inexistente. "Com força de vontade e fé em nossa santa causa". responde o cavaleiro. É nesse exemplo que a presidente eleita deve espelhar-se, se um dia aspira a atingir a existência. Outro livro, O Púcaro Bulgaro, do humoris ta brasileiro Campos de Carvalho, desenvolve-se I em tomo da dúvida sobre a existência de um país . chamado Bulgária. Um dos personagens ensina: "O que se convencionou chamar a Bulgária é sobretudo um estado de espírito. Como Deus, por exemplo". Outro argumenta que "o preconceito milenar de que a Bulgária não existe e nunca existiu sobre a face da terra" leva a crer que ela "só possa existir sobre a face de outra coisa". Ora, se a Bulgária não existe, segue-se que não existem os búlgaros. E se não existem os búlgaros muito menos existem, por suposto. os (as) filhos(as) de búlgaros. Dado que Dilma Rousseff é (ou seria, segundo a lógica do livro) filha de pai búlgaro, temos então que ... Chega. Tem coisa aí. |
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