segunda-feira, dezembro 13, 2010

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

Elogio da inexistência
Roberto Pompeu de Toledo
Revista Veja 
Com o exército perfilado sob as muralhas de Paris, Carlos Magno passava em revista seus paladinos. O imperador parava o cava­lo diante de cada um e pedia que se identifi­casse. "Sou Salomon da Bretanha, sire", dizia um, levantando a viseira da armadura. "Ulivieri de Viena". dizia outro, repetindo o gesto. "Ber­nardo de Montpellier:" "Alardo de Dordona." "Na­mo da Baviera." Enfim, Carlos Magno aproximou­se de um cavaleiro de armadura toda branca, mui­to bem conservada. "Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildivemi e dos Altri de Corbenu"az e Sura", anunciou-se o cavaleiro. O imperador estranhou. O cavaleiro não levantara a viseira. Perguntou:
"Por que não mostra o rosto?". Nenhuma respos­ta. Carlos Magno insistiu: "Por que não mostra o rosto para o seu rei?". Saiu então uma voz da ar­madura: "Porque não existo, senhor".
Assim começa o romance O Cavaleiro lnexistente do italiano Italo Calvino. Agilulfo não men­tia. Triste e inapelavelmente, não existia. O imperador  pôde comprová-lo o ao enfiar o rosto viseira adentro e verificar que reinava ali o mais completo vazio. Quem julgou que a história de Agilulfo tenha sido evocada a propósito da presidente eleita Dilma Rousseff acertou. Nunca se viu neste país um(a) presidente eleito(a) tão sumido(a). Presidentes elei­tos costumam ser filmados, fotografados, persegui­dos e festejados à exaustão. Muitos viajam para o exterior, entre a eleição e a posse, e a viagem é uma sucessão de históricos encontros, poses em paisa­gens de cartão-postal, entrevistas com perguntas em vários idiomas. Já Dilma ... Refugiou-se no es­conderijo apelidado de Granja do Tono e de lá sai para raras e pontuais cerimônias em que entra mu­da e sai calada. Quando  surge o anúncio de nomea­ção de algum ministro, não é ela, mas interposta pessoa quem o faz. Na trilha do cavaleiro Agilulfo, ela é a presidente eleita inexistente.
Quem julgou, no entanto, que se evocou o ca­valeiro de Calvino para diminuir a presidente eleita do Brasil enganou-se. Qu poderia Dilma  fazer senão inexistir? Era o papel que dela se es­perava, neste entreato, o único possível, e aquele do qual pode vir até a tirar algum proveito. Em tese, o (a) presidente eleito(a) é o sol que se le­vanta; o (a) que sai, o que se põe. A glória e a es­perança próprias das auroras pertencem ao(à) primeiro(a). É a éle(ela) portanto que são devidas todas as homenagens. Ocorre que, neste caso par­ticular, a tese inverteu-se. Temos um presidente em fim de mandato que reclama para si a totalida­de das homenagens disponíveis. Até em cerimô­nia de entrega de troféus aos melhores jogadores do Campeonato Brasileiro de Futebol comparece, como ocorreu na semana passada. Cansa a asses­soria com pedidos de inaugurações, incha a agen­da de cerimônias destinadas a aclamá-lo, não dá folga aos holofotes. É um pato que se recusa ter­minantemente a mancar.
Nesta circunstância, quem tem juízo que se acautele. Como desafiar um sol que, em aberto desafio às leis da astronomia, não aceita se pôr? Como celebrar o próprio triunfo se o outro não se cansa de lembrar (e com razão, embora o bom­senso e as boas maneiras recomendassem que não fosse tão efusivo a respeito) que o triunfo foi de­le? O esconderijo é a resposta mais adequada à ocasião. A arte da inexistência, o exercí­cio mais, recomendável. Acresce que Dilma é uma obra por fazer. Faltam-lhe o currículo e a biografia com que os pre­sidentes eleitos costumam chegar a essa posição. No livro de Calvino, Carlos Magno pergunta a Agilulfo como pode servir-lhe, sendo inexistente. "Com força de vontade e fé em nossa santa causa". respon­de o cavaleiro. É nesse exemplo que a presidente eleita deve espelhar-se, se um dia aspira a atingir a existência.
Outro livro, O Púcaro Bulgaro, do humoris ta brasileiro Campos de Carvalho, desenvolve-se I em tomo da dúvida sobre a existência de um país . chamado Bulgária. Um dos personagens ensina:
"O que se convencionou chamar a Bulgária é so­bretudo um estado de espírito. Como Deus, por exemplo". Outro argumenta que "o preconceito milenar de que a Bulgária não existe e nunca exis­tiu sobre a face da terra" leva a crer que ela "só possa existir sobre a face de outra coisa". Ora, se a Bulgária não existe, segue-se que não existem os búlgaros. E se não existem os búlgaros muito menos existem, por suposto. os (as) filhos(as) de búlgaros. Dado que Dilma Rousseff é (ou seria, segundo a lógica do livro) filha de pai búlgaro, temos então que ... Chega. Tem coisa aí.

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