sexta-feira, dezembro 10, 2010

MÍRIAM LEITÃO

A esfinge 
Míriam Leitão
O GLOBO - 10/12/10

O australiano Julian Assange, educado para duvidar das instituições, aos 39 anos faz uma revolução em vários mundos: põe em nu frontal a diplomacia, cria dilemas para o jornalismo, produz embaraços e perigos para os governos, principalmente o americano, e testa o limite das democracias. Ele foi preso porque incomoda os governos e não por sua suposta má conduta sexual.

Ele nega as acusações contra ele, mas vamos acreditar nos acusadores. Imagine que tudo o que foi dito sobre ele é verdade. Assange foi caçado no mundo inteiro, entrou na lista vermelha da Interpol, teve o endereço eletrônico cancelado por grandes operadores, cartões de crédito bloqueados, acabou preso em Londres sem poder sair com fiança, e pode ser extraditado para a Suécia. Nada aconteceria nessa intensidade se não fosse ele o fundador do Wikileaks, a ONG cujo objetivo é vazar documentos oficiais porque acha que as informações pertencem às pessoas.

Ele é controverso, esquisito, capaz de sair de uma entrevista no meio se não gostar da pergunta, já foi criticado até por integrantes da organização que representa, cultiva hábitos e estilo de um espião mais do que de um jornalista ou de um militante de uma causa pública. Mas não age sozinho. Há uma organização por trás, com outros integrantes. E não podem todos ser acusados de má conduta sexual. Nas últimas horas, eles reagiram com suas armas: hackers atacaram todos os que acham que são inimigos. Outra conclusão óbvia é que quem vaza documentos é quem tem acesso a eles. Por mais competente que seja como hacker, o que ele conseguiu dos documentos da diplomacia americana ou de qualquer outro governo ou organização foi com a ajuda de dentro. E quem é responsável por velar pelos segredos do Departamento de Estado é o Departamento de Estado.

Há controvérsias em relação à Wikileaks: quem financia? Com que propósitos? Que tipo de seleção é feita nos documentos antes de serem tornados públicos? Os segredos de fato colocam em risco a segurança dos países e de pessoas em posições vulneráveis, como soldados? Por que não tem a mesma agilidade para vazar segredos das ditaduras como a China? Estarão as democracias pagando pelos seus méritos? Isso é jornalismo ou não?

Enfim, tudo é intenso em relação à Wikileaks. Há muitas perguntas, algumas ainda sem resposta. Fiquemos nas que têm resposta. É uma espécie de jornalismo, tem subsidiado a imprensa com documentos que não podem deixar de ser publicados, e, neste aspecto, virou fonte também. Mas o que não pode ocorrer é uma instituição como essa enfraquecer o jornalismo investigativo, essa vertente da imprensa, que tem trazido a público no Brasil fatos valiosos, como os vídeos do governador José Roberto Arruda e sua base política recebendo dinheiro. Esse foi o mais importante momento do jornalismo investigativo brasileiro este ano, que teve outras revelações importantes como o uso do sigilo fiscal em mãos da Receita para constranger adversários políticos do governo Lula. Foram muitos os fatos relevantes divulgados nos últimos anos pelo jornalismo investigativo. O trabalho desses profissionais sempre será relevante, tanto na procura de suas próprias pautas, quanto no esforço de conferir e confirmar informações divulgadas por organizações especializadas como a Wikileaks. Então, a resposta é que a ação da entidade de Julian Assange é de certa forma jornalismo, mas não o substitui, nem desobriga a imprensa de seu trabalho.

O que ele revelou na última onda de vazamentos foi uma rede de intrigas que em muitos casos não vão além de fofocas, que causam constrangimentos, mas pouco prejuízo real. Há dúvidas sobre a delicadeza de certas informações, como a localização de arsenais nucleares do Ocidente. Em outros casos, mesmo sendo só fofocas revela a hipocrisia de governos e governantes.

Claro que diplomatas são mais sinceros em seus relatórios aos governos que servem do que em entrevistas à imprensa. O formalismo e a linguagem empolada são deixados de lado. Seria estranho se a forma como se reportam aos seus superiores fosse idêntica a como falam em público. O que é curioso é quando o conteúdo muda completamente e passa a ser o oposto do que é dito.

Não deixa de ser engraçado o chanceler Celso Amorim, que tanto defendeu Chávez, dizendo que ele é cão que mais late que morde; países muçulmanos empurrando os Estados Unidos para controlar o Irã. Ou saber que John Kerry foi à China conspirar contra o sucesso de Copenhague. Na Cop-15, a diplomacia brasileira insistia em dividir o mundo entre ricos, de um lado, e pobres e emergentes, do outro. Fico feliz de ter dito aos meus leitores que a briga era mais complexa do que essa divisão binária do mundo.

O ex-embaixador americano no Brasil Clifford Sobel não é de carreira, é um empresário. Seus relatórios têm muito da linguagem direta de um empresário. Eles são curiosos, mas nada revelam de fundamental: divisões dentro do governo Lula em relação aos Estados Unidos e suas interpretações de que o ministro Celso Amorim acabou submerso pelo poder do assessor Marco Aurélio Garcia não são segredo de Estado. Qualquer um poderia chegar àquelas conclusões, bastando acompanhar com atenção as atitudes públicas.

O mais assustador no caso Wikileaks são as ameaças feitas pelo governo americano que sempre se orgulhou da sua primeira emenda à Constituição, garantindo o direito à informação, e a mobilização do aparato que se formou para prender Julian Assange. Sua má conduta sexual parece pretexto. E é.

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