Saga cearense
Merval Pereira
O Globo - 22/12/2010
A saga de Ciro Gomes continua se revelando uma das mais patéticas da política nacional. De político renovador que acabou com as oligarquias cearenses, tornou-se símbolo de sua própria oligarquia, e acabou dando a volta ao mundo para acabar novamente em Sobral, que já teve seu irmão como prefeito e terá um representante seu no Ministério do primeiro governo Dilma, com o patrocínio político de seu grupo cearense.
De quase presidente eleito em 2002, Ciro Gomes está prestes a tornar-se um político sem mandato e sem apoio político de seu próprio partido, o PSB, que entrou em polvorosa quando a presidente eleita o convidou pessoalmente para assumir o Ministério da Integração Nacional.
A começar pelo presidente e principal líder do PSB, o governador reeleito em Pernambuco, Eduardo Campos, houve reação de todos os lados contra sua indicação. Campos tinha um candidato pessoal ao Ministério e não abriu mão para Ciro.
O PMDB fez questão de revelar seu descontentamento com a volta de Ciro ao primeiro plano do governo do qual se sente sócio.
O vice-presidente eleito, Michel Temer, que Ciro chamou de comandante de um agrupamento sem escrúpulos, mandou seu recado: como ministro, Ciro lhe deveria obediência hierárquica, e teria que ter “contenção verbal”.
Ciro ficou conhecido pela virulência de sua fala, o que lhe valeu o apelido de “língua de aluguel” do governo, especialmente quando se referia ao tucano José Serra. Na eleição presidencial de 2002, houve um momento da campanha em que o então candidato do PPS, Ciro Gomes, apareceu na frente de Lula.
O presidente do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, dizia que sua situação era tão confortável que, se Ciro tivesse viajado com a mulher, Patrícia Pillar, e desaparecido da campanha, poderia ter sido eleito.
Em vez disso, prosseguiu na campanha e, entusiasmado pela aprovação popular que colhia naquele momento, deixou-se perder pela boca, o que, aliás, tornou-se seu hábito. Xingou de burro um eleitor que o questionava num programa de rádio, fez comentários machistas em relação a Patrícia Pillar e se perdeu completamente, não conseguindo nem mesmo ir para o segundo turno.
Nunca ninguém foi tão humilhado publicamente quanto Ciro Gomes na campanha eleitoral deste ano, impedido de apresentar sua candidatura à Presidência da República pelo próprio Lula, que o induziu ao erro ao sugerir que transferisse seu título eleitoral para São Paulo a fim de disputar o governo daquele estado.
Não conseguiu apoio do PSB, que tinha o empresário Paulo Skaf como candidato, um dos maiores absurdos políticos de nossa história recente, foi bombardeado pelo PT, e acabou não podendo nem mesmo ser candidato a deputado federal. Vendo o cerco contra sua candidatura à Presidência na eleição deste ano se apertar, Ciro voltou a usar sua língua ferina, dessa vez contra o próprio governo.
Disse que Lula “viajou na maionese”, e estava enganado pensando que era Deus e que tudo podia. Disse que Serra era mais preparado para exercer a Presidência da República do que Dilma.
Caiu em desgraça junto ao PT, ao PMDB e ao próprio PSB, cujo presidente Eduardo Campos conspirou com Lula para inviabilizar a candidatura de Ciro.
A relação conflituosa de Ciro com Lula levou até mesmo a que ele rompesse com seu maior aliado político no Ceará, o senador Tasso Jereissati, que já abandonara o candidato tucano José Serra para apoiá-lo em 2002. Pois Ciro traiu o acordo branco que tinha com Tasso no Ceará para tentar se aproximar mais de Lula, mas não teve a contrapartida.
O que Lula queria era uma disputa polarizada entre Dilma e Serra, ou entre PT e PSDB, ou, melhor ainda, entre ele e Fernando Henrique. E Ciro insistia em quebrar essa polarização, alegando que era melhor para os governistas que houvesse mais candidaturas.
Lula mostrou-se certo, do ponto de vista de seu interesse pessoal, na estratégia, tanto que foi a presença de Marina Silva pelo PV que impediu que a disputa se resolvesse já no primeiro turno.
Mas, naquele momento, registrei aqui na coluna que o que menos importava era o que pensa ou diz o deputado Ciro Gomes. “Goste-se ou não da maneira como o deputado federal Ciro Gomes faz política, uma coisa é certa: sua desistência forçada à disputa da Presidência da República é um golpe na democracia”, escrevi então.
Considerava, e ainda considero, que a interferência frontal do presidente Lula para inviabilizar uma candidatura em benefício da que escolhera era uma agressão do ponto de vista democrático à livre escolha do eleitor.
Conchavos de gabinete com o objetivo de transformar em plebiscito uma eleição em dois turnos, concebida justamente para dar ao candidato eleito a garantia de apoio da maioria do eleitorado, reduziram o sentido da eleição.
Ciro foi de diversos partidos, inclusive da Arena no tempo da ditadura, mas teve sucesso político no PSDB, pelo qual chegou a ser ministro da Fazenda na transição do governo Itamar Franco. Foi chamado às pressas para apagar um incêndio que ameaçava a candidatura presidencial de Fernando Henrique Cardoso.
O então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, foi flagrado com o microfone aberto em um programa de televisão dizendo coisas como “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”. Ciro Gomes era um jovem político de sucesso que governava o Ceará, e foi uma grande solução política para o momento.
Esse período serviu também para que se tornasse adversário ferrenho tanto do ex-presidente quanto de José Serra, a quem, pela gana que tem, deve atribuir uma atuação decisiva para que não tenha continuado ministro da Fazenda.
Na ocasião, o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso ofereceu-lhe o posto de Ministro da Saúde, que Ciro recusou, considerando uma ofensa a oferta.
Anos depois, José Serra, derrotado na disputa para a Prefeitura de São Paulo, ocupou o Ministério da Saúde e alavancou sua carreira política, tornando-se candidato a presidente em 2002.
Até hoje medidas adotadas no ministério, como os genéricos, lhe rendem uma visibilidade política importante.
Pois, ironicamente, Ciro hoje tinha como seu sonho de consumo assumir o Ministério da Saúde no governo Dilma, o que lhe foi negado liminarmente.
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