Sinais de mudança
Merval Pereira
O Globo - 07/12/2010
Foi com a cândida explicação de que se tratava de uma “luta política” que o então recém-eleito presidente da Câmara, deputado João Paulo Cunha, justificou a drástica mudança de posição dos petistas no início do governo Lula, em 2003. Foi quando passaram a defender o que antes combatiam, especialmente a reforma da Previdência, que conseguiram aprovar com o auxílio da oposição, depois de, por anos a fio, a barrarem no plenário do Congresso durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso.
Seu simplismo antecipava o pragmatismo que viria pela frente.
Mais uma vez estamos diante da mesma situação, com a presidente eleita, Dilma Rousseff, defendendo pontos de vista que combatia durante a campanha e assumindo posições que estariam mais de acordo na boca de seu adversário tucano, José Serra.
A decisão acertada de procurar um executivo profissional para comandar a Infraero, retirando o cargo da troca de favores com políticos da base aliada, corresponde a uma consequência lógica de privatizar os aeroportos brasileiros, para que seja possível torná- los compatíveis com as necessidades de um país que está incorporando largas faixas da população ao t u r i s m o , t a n t o i n t e r n o quanto externo, e vai organizar uma Copa do Mundo de futebol e as Olimpíadas.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, que será mantido no cargo, parece outra pessoa ao anunciar que o governo prepara um pacote para reduzir seus custos e que até projetos do PAC serão atrasados.
Além disso, o governo também vai trabalhar para impedir novos gastos, como o salário único para as polícias estaduais, o salário mínimo de R$ 580 a R$ 600 para 2011 e o aumento de 56% para os servidores do Judiciário.
Na entrevista que concedeu ao “Washington Post”, Dilma se posiciona com vigor contra a abstenção brasileira na ONU quando foi aprovada uma censura ao Irã por violações de direitos humanos, exigindo o fim dos apedrejamentos, da perseguição a minorias e de ataques a jornalistas.
Na alegação, a presidente eleita diz que, sendo mulher, não poderia ser a favor de “práticas medievais” como o apedrejamento a que f o i c o n d e n a d a S a k i n e h Mohammadi Ashtiani por suposto adultério, pena depois trocada pelo enforcamento como demonstração de “boa vontade” do governo iraniano diante da reação negativa internacional.
É provável que a presidente eleita tenha salientado a condição feminina apenas como maneira de enfatizar sua posição, não sendo razoável imaginar-se que ela seja limitada por questões de gênero.
Sendo assim, o futuro ministro das Relações Exteriores terá pela frente um problema para oficializar uma mudança de política de Estado que foi apresentada oficialmente pelo governo Lula à ONU.
Por essa proposta formal, a ONU deveria passar a tratar os países que violam os direitos humanos com mais condescendência, evitando críticas públicas aos regimes autoritários.
A proposta evidenciou, como registrei aqui na época, que, muito mais que decisões pragmáticas, a abstenção em votações contra Cuba com relação à violação dos direitos humanos ou mesmo votar contra uma condenação do governo do Sudão sobre Darfur, onde um conflito étnico matou mais de 200 mil pessoas, faziam parte de uma política de Estado que foi alterada sem a aprovação do Congresso brasileiro.
A mudança de padrão nas votações brasileiras no Conselho de Direitos Humanos da ONU havia sido denunciada pela ONG Conectas Direitos Humanos, mostrando que ela obedecia a interesses políticos e comerciais, e não tinha relação direta com o conceito de direitos humanos em si.
Em relação à China, por exemplo, o Brasil mudou sua posição, votando a favor da no-action motion em 2004, ajudando a evitar assim a condenação daquele país por violações de direitos humanos.
Em situação similar em 2001, o governo brasileiro se abstivera de votar.
Houve uma mudança também em relação à resolução que condenava a situação dos direitos humanos na Chechênia.
Da abstenção em 2001 e 2002, o governo brasileiro passou a votar explicitamente contra a condenação da Rússia em 2003 e 2004.
É preciso saber agora até que ponto a futura política externa brasileira mudará de posição, pois a questão dos direitos humanos esconde uma política mais ampla de se colocar como um contraponto aos Estados Unidos, que o governo brasileiro considera ter politizado o Conselho de Direitos Humanos da ONU, usando sua força política para combater seus inimigos com sanções.
Na mesma entrevista ao “Washington Post”, a presidente eleita, Dilma Rousseff, faz as mesmas críticas ao governo dos Estados Unidos que têm sido feitas pelo governo Lula em relação ao uso de força para resolver questões políticas, referindo-se especificamente às guerras do Afeganistão e do Iraque.
Mas afirma o desejo de se aproximar do governo dos Estados Unidos, uma mudança na política externa, que é vista por Washington, de acordo com os telegramas vazados pelo site Wiki- Leaks, como antiamericana.
Dilma Rousseff não tem as relações pessoais que o presidente Lula tem com seu velho amigo Fidel Castro, o que o impede de criticar os abusos aos direitos humanos em Cuba.
Mas, vinda da esquerda armada, pode ter outros tipos de constrangimentos.
No governo Lula, o esquerdismo do Itamaraty serviu de contraponto a políticas pragmáticas no campo econômico.
Ainda é preciso ver a prática para saber o que realmente vai mudar na política externa brasileira, e em que uma eventual mudança influenciará a política interna.
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