Ainda a guerra sem fim
João Ubaldo Ribeiro
O Estado de S.Paulo - 12/12/10
Na semana passada, quando falei nos participantes do mercado de drogas, houve quem observasse que quase deixei de lado o consumidor, tido corretamente como o principal elemento, pois sem ele não haveria nem produção nem comércio. É ele a razão de ser do mercado. Ou seja, acabar com a demanda acabaria com a oferta. Certo, certíssimo, mas quem acaba com a demanda? Esse tipo de conversa termina parecendo, para algumas pessoas, que é uma defesa do consumo, mas não é. É uma constatação, tão despida de valores quanto possível. Não digo nem, o que é verdade sob outros ângulos, que sou contra o consumo. Aqui, agora, pretendo somente vê-lo.
Alguns argumentos sobre o consumidor muitas vezes parecem querer enxergar nele a possibilidade de, mediante um ato de "força de vontade", abandonar o hábito, ou vício. Mas o consumidor de drogas crônico não é capaz de decisões tão racionais. Quase todos os fumantes de cigarro concordam plenamente com os argumentos que ouvem e leem sobre seu vício. E, enquanto escutam as ajuizadas e comprovadas razões dos antitabagistas, acendem, mortos de culpa, um novo cigarro. Os bebedores inveterados também concordam que o álcool danifica o cérebro e o sistema nervoso, arrasa o fígado e causa uma série de outros males - e erguem um brinde a isso.
Que as drogas são maléficas para a saúde todo mundo sabe. Algumas, como o crack, são devastadoras e seu uso contínuo leva invariavelmente à morte. Quem fuma crack, pelo menos o adulto, já ouviu dizer, o que é fato, que ele vicia na primeira tragada. No entanto, a perspectiva da morte morrida ou da morte matada não demove o usuário, nem aqui nem na China, onde fazem julgamentos rápidos e executam traficantes publicamente, dando-lhes um tiro de grosso calibre na nuca, que lhes esfarela o crânio. Em parte da humanidade, talvez não tão pequena quanto se possa pensar, é uma vocação insopitável arruinar a saúde ou a vida, seja pelo álcool, pelo fumo, pelo excesso de psicotrópicos ou anfetaminas, pela maconha, pela cocaína ou por outra droga.
Alguém pode estar pensando que eu agrupei, na pequena lista acima, drogas que não podem ser classificadas da mesma forma. É uma grande verdade, embora haja semelhanças que a gente às vezes não lembra. Arrisco a hipótese de que, em determinados usuários, as alterações de comportamento provocadas pelo excesso de álcool são semelhantes ou até praticamente iguais, às da cocaína, exceto o torpor que acaba sobrevindo ao alcoolista, nos estágios finais da carraspana. Aliás, a combinação dessas duas drogas é comum, no que o usuário talvez pretenda unir o que para ele é o melhor de dois mundos.
Mas as drogas são diferentes entre si, como, por exemplo, a maconha e a cocaína. Não que a primeira seja inofensiva, como é comum ouvir-se. Nenhuma droga é inofensiva e existem estudos que provam os efeitos deletérios de seu abuso na memória, na motivação, nos mecanismos psicomotores, na vida sexual, etc. E os que dizem que fumá-la não causa danos ao aparelho respiratório se esquecem de que isso se deve a que a maioria dos que a fumam, ao contrário dos fumantes de tabaco, só o faz poucas vezes por dia. Inalar fumaça nunca fez bem a ninguém e a maconha tem tantos "alcatrões" quanto o tabaco. Mas enfiá-la no mesmo saco que a cocaína e fazê-la objeto do mesmo combate é como dar o mesmo remédio para doenças diferentes, agravando uma delas. O tráfico de drogas perderia muito poder com uma possível e, para mim acertada, legalização regulada e fiscalizada da maconha. E os impostos sobre ela poderiam ser maiores que os incidentes sobre álcool e tabaco, assim como os enormes recursos hoje empregados para combater seu tráfico seriam poupados, ou empregados de forma bem mais compensadora.
Alega-se que a circunstância de o álcool, o tabaco e as drogas de farmácia serem legalizados não significa que precisamos de outra droga legalizada. Também verdade, não precisamos, mas ela é uma realidade inelutável. Não se trata de reconhecer uma necessidade, trata-se de enfrentar um problema da maneira mais eficaz. A maconha está aí e não vai embora. Se se deseja combatê-la, deve-se pensar no mesmo tipo de combate que se faz ao álcool e ao tabaco, talvez submetendo-a a restrições ainda maiores que as dos dois, mas não a empurrando para o tráfico. O que se faz hoje é gastar somas cada vez mais vultosas com algo que podia custar muitíssimo menos, em dinheiro e mesmo vidas, e ser pelo menos razoavelmente bem administrado.
A cocaína também não vai embora. Quem acha que o combate à cocaína será um dia vencido, com a (inviabilíssima) erradicação das plantações de coca ou com preços excessivamente altos, causados pela repressão, não leva em conta que se trata de um composto químico sintetizado há muitos anos. O laboratório precisa ser bem equipado, mas um químico bom de sintetização ou sabe ou pode espiar na internet como é que se produz cocaína. Assim que o preço começasse a compensar, é óbvio que surgiriam profissionais e capitais interessados, pois sempre há interessados em fornecer o que é bem pago.
Mas cocaína, droga pesada capaz até de matar mais ou menos instantaneamente, não é de fato maconha e sua legalização resultaria bastante complicada. Contudo, não deixa de ser caso a pensar a possibilidade de que, através de um planejamento complexo, envolvendo receitas médicas controladas, farmácias habilitadas, monitoração por uma base de dados informatizada e outras salvaguardas, ela venha a ser comerciada e consumida legalmente, como já foi. Claro, logo apareceriam compradores de receitas e médicos inescrupulosos que as venderiam. Certamente, e até mais que isso, mas aí é a mesma coisa que em relação ao consumo de drogas: não tem jeito, o ser humano não falha.
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