Um bilhão de famintos
Dom Odilo P. Scherer
O ESTADO DE SÃO PAULO - 13/11/10
A Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento e a Agricultura (FAO) lançou recentemente uma campanha de ajuda aos cerca de 1 bilhão de famintos ou subalimentados no mundo, sobretudo na África e na Ásia, mas também na América Latina. É muita gente! Será pela falta de alimentos, ou porque a terra é incapaz de produzi-los em quantidade suficiente?
Em áreas desérticas ou semiáridas, é provável que essas duas hipóteses sejam verdadeiras. Mas olhando o mundo como um todo, não se pode afirmar que faltem alimentos, ou que a terra seja incapaz de produzi-los. Há até sobra de alimentos e muita capacidade produtiva não aproveitada. Os verdadeiros problemas são outros e nos levam à reflexão sobre algumas questões básicas da convivência entre os povos, já abordadas em diversos documentos da Doutrina Social da Igreja: a adoção de um adequado conceito de desenvolvimento e a revisão dos parâmetros das relações entre os povos, para integrar novos critérios éticos, sem os quais a fome, a pobreza, a violência e as injustiças locais e internacionais não serão resolvidas.
No Dia Mundial da Alimentação, 15 de outubro passado, em carta dirigida ao diretor-geral da FAO, Jacques Diouf, o papa Bento XVI recordou que o primeiro compromisso dos indivíduos, das organizações internacionais e dos Estados deve ser o de libertar da fome todos os membros da família humana. E convidou a comunidade internacional a estar unida nessa luta.
Infelizmente, não é isso o que se vê quando programas da agricultura voltada para a produção de alimentos não recebem o apoio e o estímulo que são dados a setores mais rentáveis da ocupação e da economia. Produção e distribuição de alimentos deveriam merecer atenção prioritária, em vista do bem social que delas depende: o elementar direito à alimentação. Esses setores poderiam dar oportunidade de trabalho a milhões de desempregados e espaço para o progresso tecnológico.
Mas aqui se coloca outra questão de fundo: que tipo de desenvolvimento e quais prioridades? Estimular setores tecnológicos da produção de supérfluos, coisas interessantes, mas não indispensáveis, que trazem lucro mais rápido e em maior volume, ou matar a fome do povo e satisfazer outras necessidades básicas, como a moradia, a saúde e a educação? Questão de escolha.
É espantoso que em certos países, como a Índia e o próprio Brasil, convivam setores tecnológicos de ponta com situações da mais dura miséria.
Na sua encíclica Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade, 2009), o papa Bento XVI convida os povos e os seus governantes a buscarem um autêntico desenvolvimento humano, baseado na ideia de pessoa como unidade de corpo, alma e espírito; a satisfação das necessidades materiais com o acesso à tecnologia e aos bens de consumo não é tudo. O desenvolvimento humano integral vai além da posse de bens e se expressa na adesão aos valores antropológicos e éticos mais elevados, como a fraternidade, a solidariedade e o bem comum.
Tais valores são sumamente importantes quando se trata de debelar a fome. Quando o desenvolvimento econômico local e globalizado integra esses imperativos éticos, ele é capaz de favorecer o bem comum mais que os interesses de parte. A constante afirmação dos interesses fechados de países, grupos e setores, conseguida pela pressão de quem já é mais forte, até mesmo pelas armas, produziu o mundo que vemos: de um lado, mesas abarrotadas e gente superalimentada; de outro, multidões famintas a se baterem por escassas migalhas. Tem jeito de mudar isso?
O papa indica mais questões do desenvolvimento humano integral: somos parte de uma grande família e precisamos superar a indiferença diante das necessidades do próximo, seja ele pessoa, povo ou país. A humanidade é uma única família e todos estão no mesmo barco, para o bem e para o mal: ou vai para a frente esse barco, com todos dentro, ou afundam todos juntos. O bem de um é o bem de todos, a falta de paz de um é a falta de paz de todos.
Quando se levar a sério a consciência dessa responsabilidade de uns pelos outros, de um povo pelo outro, dos fartos pelos famintos, será possível combinar de forma nova as regras da convivência neste condomínio familiar maravilhoso que o Criador pôs à nossa disposição.
A solução para o problema da fome está menos na roça e nas mãos calejadas dos agricultores do que nos gabinetes e fóruns das decisões políticas, econômicas, financeiras e comerciais. A fome será superada mais pela ponta da caneta do que pelo cabo da enxada. Uma renovada fraternidade e solidariedade é urgente necessidade moral na família humana, na qual é direito que os mais sadios e fortes olhem pelos mais fracos e doentes. Não dá para continuar a fazer de conta que o problema é apenas dos outros. De fato, a atual migração de milhões de pessoas para países ricos ou regiões mais desenvolvidas mostra que as pessoas vão atrás do pão: se o pão não chega aonde as pessoas estão, elas vão lá onde o pão se encontra. O problema é de todos.
A eliminação da fome e da subalimentação requer a superação das barreiras do egoísmo, da insensibilidade e da indiferença, sinais preocupantes de um subdesenvolvimento humano e moral, e a abertura para uma fecunda gratuidade na relação de pessoas, organizações e povos. A gratuidade é uma das mais nobres disposições humanas e leva a pensar de modo desinteressado no bem do próximo; é expressão de fraternidade verdadeira na família humana. Planos e programas continuam sendo necessários, assim como o respeito pelas regras e pela justiça; mas tudo isso será animado por disposições novas, capazes de dar brilho a 1 bilhão de olhares famintos no mundo.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
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