Paulistas, nordestinos, brasileiros
Aldo Rebelo
O ESTADO DE SÃO PAULO - 13/11/10
"O meu pai era paulista,
Meu avô, pernambucano,
O Meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano"
(Chico Buarque - Para Todos)
A manifestação virulenta e desprovida de qualquer teor de humanismo de uma estudante de Direito na internet reabriu o debate acerca do preconceito contra nordestinos em São Paulo e repõe a reflexão sobre o sentimento de unidade e identidade nacionais. Tão preocupante quanto a intolerância das diatribes é a contrapartida que simula respeito, mas diferencia nordestinos e paulistas como populações distintas dentro da mesma nação. Houve quem, a pretexto de defender os nordestinos, os comparasse aos mexicanos, como se o Nordeste fosse para o Brasil o que o México é para os Estados Unidos.
São Paulo tem culpa no cartório? É verdade que ramos obsoletos do pensamento paulista se empenharam em forjar um conceito de paulistanidade que a pesquisadora Jessita Maria Nogueira Moutinho cunhou de "ideologia afirmadora da superioridade étnica, econômica e política dos naturais do Estado de São Paulo". Nesse campo minado se inscrevem as obras de Alberto Salles (A Pátria Paulista, 1877) e Alfredo Ellis Jr.
(Confederação ou Separação, 1933). A essa mirrada corrente de opinião escapou, para começo de conversa, a formação social paulista e nela, a presença do índio. Antes de quase tudo virar italiano, São Paulo era a cidade portuguesa mais indígena do Brasil, a ponto de aqui se falar mais a língua tupi, cuja presença se perpetua a cada esquina em nomes como Ibirapuera, Anhangabaú, Itaquera, Tietê. A elite ilustrada jamais renegou essa origem, ao contrário, sempre se orgulhou de descender do cacique Tibiriçá - fundador da cidade com o padre Nóbrega -, pai de Bartira, sogro de João Ramalho, o Adão dos quatrocentões da Pauliceia.
Para além das arengas ideológicas e intelectuais, quando os interesses econômicos e políticos de São Paulo destoavam do restante do País, jamais se formou aqui uma corrente de massas capaz de ameaçar a integridade da Nação. A paulistanidade não é um conceito exclusivo nem excludente. Os imaginários regionais são fecundos em todos os Estados - a paulistanidade, a mineiridade, o gauchismo e a pernambucanidade são manifestações que propiciam a síntese da fisionomia local como parte da identidade nacional. Os lugares de história mais densa valorizam suas características, exaltam seus traços e constroem um imaginário que mesmo quando desafia o restante do País não afronta a unidade nacional.
É assim que, para ficar no plano das grandes lutas históricas, os mineiros celebram a Conjuração de Tiradentes; os gaúchos, a Farroupilha; os baianos, a Revolta dos Alfaiates e o 2 de Julho; os pernambucanos, a Insurreição de 1817, a Confederação do Equador e a expulsão dos holandeses em 1654; os paraenses, a Cabanagem.
São Paulo cobre de glórias seus bandeirantes, e o que chamam de Revolução Constitucionalista de 1932 teve como objetivo não o separatismo, mas a redemocratização do País, celebrando como resultado a convocação da Constituinte de 1933. É de registrar a preocupação do governador Pedro de Toledo em mandar imprimir dinheiro para o movimento de 1932 com a efígie de heróis nacionais como Caxias, Tamandaré, Floriano Peixoto e Rui Barbosa. Ressalta ainda os dizeres do brasão criado na ocasião, com a inscrição latina Pro Brasilia fiant eximia - Pelo Brasil faça-se o melhor.
A rigor, a geografia do Brasil é quase uma invenção paulista. A grande saga dos bandeirantes traçou os limites do território nacional, fincando a bandeira do futuro País em rincões recônditos - de Guaíra ao Rio Acre. São Paulo enviou regimentos para expulsar os holandeses da Bahia e de Pernambuco, e deles fez parte ninguém menos que o grande Raposo Tavares, à frente de 150 homens recrutados à sua custa. Nas páginas deste jornal Euclides da Cunha revelou o Brasil profundo ao Brasil urbano ao descrever a Guerra de Canudos, superando o positivismo cientificista abraçado por gente de fina inteligência e largo preconceito. A comovedora descrição que fez do sertanejo teve a força de uma revolução antropológica e cultural de valorização do homem nordestino.
O engenheiro e geógrafo baiano Teodoro Sampaio estudou a Bacia do Rio Tietê, foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Escola Politécnica, e deixou importante contribuição sobre as bandeiras paulistas na formação da geografia do Brasil. Hoje é nome de município no Estado e de rua na capital.
Na História cintilam episódios de colaboração decisiva entre nordestinos e paulistas - a exemplo do apoio do fazendeiro de Campinas Campos Sales ao alagoano Deodoro da Fonseca, proclamador da República e seu primeiro presidente. O governo de São Paulo, tendo à frente o mineiro Bernardino de Campos, foi o que mais ajudou outro alagoano, Floriano Peixoto, a consolidar a República - mobilizando tropas para combater a reação monárquica; 14 anos depois, o alagoano Manoel Joaquim de Albuquerque Lins governaria São Paulo, de 1908 a 1912. Ainda em São Paulo, a paraibana Luiza Erundina seria eleita prefeita da capital e o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva iniciaria sua vida sindical e política rumo à Presidência da República.
São Paulo não discrimina os nordestinos como política nem em movimento social. A mocinha do Twitter é pouco mais que um caso de desatino. O desafio é amalgamar a identidade nacional sem as tentações das superioridades regionais e nos considerarmos todos filhos de uma só Pátria. O Brasil que continuamos a construir é o arquitetado pelo maior dos paulistas e também o maior dos brasileiros, José Bonifácio de Andada e Silva, ao traçar a política do jovem país: "Nós não reconhecemos diferenças nem distinções na família humana."
DEPUTADO FEDERAL (PC DO B-SP)
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