Entre fraldas e fraudes
Roberto da Matta
O Estado de S.Paulo - 15/09/10
Bill Cosby, um genial comediante americano negro, contava como, aos 10 anos, foi visitar o avô que, engravatado, lhe ofereceu uma cerveja, deu-lhe um charuto, sentou-o numa confortável cadeira de balanço e, em seguida, perguntou-lhe sobre o que ele achava da política do Partido Democrata. Cosby discutia política nacional dando gostosas baforadas com o pai do seu pai, quando o genitor chegou e liquidou a farra de uma igualdade que só pode existir entre as gerações alternadas, como sabiam os antropólogos da minha tribo. Os laços entre pais e filhos contêm uma rígida autoridade que se alterna e compensa pelo tratamento chistoso e livre entre avós (ou tios) e netos (e sobrinhos), esses papéis que eram semelhantes em Roma e em muitos outros sistemas de família e parentesco.
Podemos ser fraudes como genitores, mas é impossível fraudar o papel de avô. Num caso, exige-se muito; noutro, a fraude é substituída pelas fraldas. Ora, fraudar é mais do que mentir: é criar ilusões, é inventar competências, é encobrir malfeitos com imagens e propaganda enganosa. Fraldar, porém, diz respeito a fazer exatamente o oposto. Trata-se de vestir o infante, dando-lhe aquela primeira tintura de um traço que temos como básico na nossa sociedade: a diferença essencial entre o sujo e o limpo. Se as regras forem realmente honradas, as fraudes devem ser punidas; fraldas, entretanto, são jogadas fora. Mas tanto a fralda quanto a fraude implicam alguma "sujeira", no sentido popular do termo. Fraudes remetem a falcatruas e hipocrisias (por exemplo: eu falo que vou fazer isso ou aquilo só para ter votos); fraldas têm tudo a ver com mamadas e banhos que fazem crescer. Ademais, elas limpam e separam o sujo do limpo. Entende-se, portanto, o ato falho auditivo da candidata Dilma quando, ao ser indagada sobre "fraldas", entendeu que era questionada sobre "fraudes". Estas mal traçadas sobre o que significa ser avó ou avô, esses papéis nos quais - dizem - o sexo e a sexualidade não têm mais importância, talvez ajudem a compreender a falha da audição de uma candidata tão preocupada em pretender ser o que obviamente não é; que a fralda da avó se confunde com a fraude tão comum na política do partido que ela representa.
Um dia eu escrevi um texto teorizando sobre o "voto amigo", no qual justificava por que não ia votar motivado ideologicamente, mas por simpatia pessoal. A nota, que foi recebida furiosamente por uma esquerda que sempre espuma de ódio com os outros, mas vive debaixo de uma ética de condescendência consigo mesma, foi escrita com o intuito de politizar os elos pessoais. Os laços de amizade e reciprocidade que até hoje nos obrigam a escolher mais pessoas amigas do que representantes de posicionamentos políticos ou movimentos sociais como motivos para o voto. Se tudo - inclusive e, sobretudo, o sexo - é política, como me ensinava um professor ativista nos idos de 1960, então por que os amigos não são também "politizáveis" e, assim assumidos, transformados em figuras capazes de trazer à nossa consciência, que se quer transformadora, as eventuais desarmonias entre partidos e ideologias; entre as incoerências dos hábitos praticados sem pensar e das instituições desenhadas para transformar o mundo? Afinal de contas, eis o que eu dizia: se exigimos uma politização do mundo, como deixar de fora os amigos, a casa, os parentes e os compadres? Se a coerência é impossível, não seria o caso de discuti-la e, assim, politizá-la no sentido mais produtivo dessa palavra?
Fiquei muito feliz descobrindo que muitos brasileiros geniais, ilustres e sábios, como Caetano Veloso e Oscar Niemeyer, vão votar em amigos. O arquiteto vai votar em Marco Maciel, um neoliberal que, para muitos, deveria queimar no inferno, porque, diz Niemeyer, "eu o conheço há muito tempo e ele é inteligente, discreto, honesto, honestíssimo".
Haveria algum problema entre o desejo de mudar, permanecendo leal àqueles que "eu conheço"? A amizade suspende todos os juízos, leis e normas? Afinal, pelos amigos podemos fazer tudo. E se Judas, Stalin, Fidel, Chávez ou Hitler fossem meus amigos?
Eu acho que é preciso distinguir fraudes e fraldas. E essa distinção é o projeto mais básico no nosso momento político-eleitoral.
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