O Brasil e o Tratado de Não-Proliferação
Rubens Barbosa
O Estado de S.Paulo - 08/06/10
Mesmo antes do fim da guerra fria, o desarmamento nuclear, a não-proliferação de armas atômicas e o uso pacífico da energia nuclear já eram preocupações da comunidade internacional. Em 1968 havia sido negociado o Tratado de Não-Proliferação (TNP), abrangendo essas três vertentes. Nos 40 anos seguintes, em vez de avançarmos no sentido de livrar o mundo da ameaça nuclear, tivemos recuos importantes no processo negociador.
Contrariamente ao disposto no TNP, Israel, Índia e Paquistão tornaram-se potências nucleares sem aderir ao tratado. A Coreia do Norte e o Irã, por sua vez, querem dominar a tecnologia para a construção de artefatos nucleares.
A situação agravou-se mais recentemente, com o temor de que grupos terroristas tenham acesso a produtos ou materiais nucleares. Essa questão passou a dominar quase obsessivamente a agenda doméstica nos EUA depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
A eleição do presidente Barack Obama e o fim do radicalismo "bushiano" abriram espaço para o governo de Washington propor iniciativas adicionais em relação à questão do desarmamento e também quanto à não-proliferação. O discurso de Praga sobre a eliminação total das armas atômicas, mais o acordo assinado em março com a Rússia para a redução dos arsenais de ogivas nucleares foram gestos táticos dos EUA para reduzir as críticas de inação na área do desarmamento, enquanto aumentavam as pressões sobre os países não-nucleares para conter os riscos da proliferação.
A Conferência de Segurança Nuclear, convocada pelos EUA em abril, e a quinta revisão do TNP, realizada em maio, no âmbito da Organização das Nações Unidas, foram instâncias utilizadas com esse objetivo, pelos países nucleares, para a aprovação de medidas e resoluções restritivas. Os temas do desarmamento e, sobretudo, o da não-proliferação nuclear, pela ameaça que representam para a paz e a segurança mundiais, em especial a partir da entrada em cena das redes terroristas, passaram a ser incluídos com alta prioridade na agenda internacional.
Para o Brasil, que desenvolve um programa nuclear importante e domina o ciclo completo do combustível, trata-se de matéria de grande interesse. A planta de enriquecimento de urânio em Resende (RJ) coloca o Brasil num seleto clube de fornecedores desse produto para centrais nucleares espalhadas pelo mundo.
O documento final do TNP contém uma avaliação dos últimos dez anos e um plano de ação que refletem, em larga medida, as posições defendidas pelo Brasil. O equilíbrio de ações em matéria de desarmamento e da não-proliferação confirmou a tese, sempre defendida pelo nosso país, de que ambos os processos se reforçam mutuamente, não sendo, portanto, necessário avançar simultânea e paralelamente com medidas concretas e verificáveis nos dois campos.
Sob o ângulo político, talvez o resultado mais importante tenha sido a decisão de discutir a criação, no Oriente Médio, de uma zona livre de armas nucleares e de outras armas de destruição em massa, em cumprimento da resolução sobre o assunto adotada no bojo do pacote que estendeu o tratado indefinidamente, em 1995, e até aqui paralisada.
No tocante ao desarmamento, apesar de menos ambicioso do que esperavam os países não armados nuclearmente, o plano de ação contém pontos positivos e, até certo ponto, inovadores, como a ideia de que a redução de arsenais deve abranger não só as armas empregadas, mas também as armazenadas, e que o processo de redução poderá envolver ainda as armas nucleares que os EUA mantêm em território europeu. Por outro lado, embora tenha ficado muito aquém do que era exigido pelos países não-nucleares, prevaleceu a ideia de se iniciarem consultas com vista à negociação de um quadro jurídico mais preciso do desarmamento nuclear.
Quanto à não-proliferação, a questão mais importante para o Brasil diz respeito ao tratamento dispensado à aplicação do Protocolo Adicional do TNP, com exigências adicionais para inspeções pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em plantas de enriquecimento de urânio e outras dependências ligadas ao programa nuclear.
A redação ambígua do documento final permitiu que tanto o Brasil como os EUA reivindiquem que suas preocupações foram plenamente atendidas. Em vez de linguagem aceitando a obrigatoriedade do Protocolo Adicional (como pretendiam as potencias nucleares), ficou estabelecido, segundo o Brasil, que se trata de documento voluntário e que concluí-lo ou não é um direito soberano de cada Estado. A conferência reconhece que se trata de um padrão de verificação apenas para os países que assinaram e aplicam o Protocolo Adicional. O protocolo, portanto, não pode ser considerado como um padrão de verificação geral das salvaguardas da AIEA.
Nossa interpretação não coincide com a dos países nucleares, em especial a dos EUA, que afirmam que, pela primeira vez, um documento oficial do TNP reconhece o Protocolo Adicional, juntamente com o Acordo de Salvaguardas da AIEA, como sendo o padrão avançado de verificação do TNP.
No tocante aos usos pacíficos da energia nuclear, as posições brasileiras também foram atendidas. Entre elas, o reconhecimento de que as opções em matéria de energia e de usos pacíficos da energia nuclear são soberanas e, portanto, devem ser respeitadas, inclusive as relacionadas com o desenvolvimento do ciclo do combustível nuclear.
Os resultados da reunião de revisão do TNP são um passo positivo, embora limitado.
A questão das inspeções mais intrusivas da AIEA, de interesse do Brasil, e a decisão de tornar o Oriente Médio uma zona desnuclearizada continuarão, contudo, por muito tempo, sem consenso na agenda global.
FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON (1999-2004)
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