Coluna da copa
ROBERTO DaMATTA
O GLOBO - 30/06/10
Impossível negar o imenso papel do futebol e da Copa do Mundo em nossas vidas. Monocordiais e monomaníacos, apaixonados e habituados a viver por meio de uma só pessoa, instituição ou quadro de valores nós simplesmente adoramos (e por isso tanto sofremos) esse momento no qual o mundo está centrado no futebol e do futebol é o centro do mundo. Se Copérnico é o nosso mais desconhecido bandido, os liberais são os nossos maiores inimigos e os pensadores que descentralizam e igualam os nossos neorreacionários, o futebol — que chegou via colonialismo, mas com o capitalismo e a disciplina fabril, e que tem como fundo a experiência capitalista, onde falir não era morrer, e competir, matar — resgata todo o nosso amor a salvação por meio do exclusivismo, e do messianismo, do primeiro lugar, da posse do caneco — do “ser” mais do que se tornar campeão! Habituados com as gradações que situam coisas e pessoas em maiores e menores, vivemos cada campeonato mundial de futebol como um teste da nossa posição num concerto de países. Não nos tornamos campeões. O que fazemos sempre é o teste de uma confirmação religiosa e antimoderna segundo a qual seríamos sempre campeões. Apesar de toda a vivência da modernidade, da qual damos um testemunho penoso e contraditório, pois odiamos o plural, o relativo, o competitivo como sinais de igualdade, alternativa e escolha, continuamos a nos pensar como o sal da terra. Somos os herdeiros abençoados de um mundo sem males que um dia volverá com sede num Brasil governado perpetuamente por Dom Sebastião. Aliás, ele já está entre nós. A espera da vitória (que já estaria escrita), mas que lamentavelmente se faz por meio de nossos jogadores e de nosso pensamento positivo em corrente espiritual com o time, é uma prova dessa visão de mundo tradicional e reacionária. Um mundo centrado no Brasil como pátria do universo. O futebol e os campeonatos, como as Olimpíadas, trazem de volta um velho e supostamente enterrado etnocentrismo.
Curioso que um esporte seja o centro desse retorno ao messiânico. O Brasil está predestinado a ser o maior do mundo, mas para isso deve se submeter a certas provas. Uma delas é a eliminação de todas as diferenças e a restauração da hierarquia por meio do misticismo estatal; a outra é a presença de superpessoas — esses craques melhores do mundo que, lamentável e injustamente, porém, têm que ser postos à prova.
Não passa despercebido o vezo de um sentimento de injustiça por termos que jogar e, jogando, correr o risco de perder pois, no fundo, o Brasil não teria que provar que é de longe o melhor, mesmo quando tem no seu currículo uma terrível história de misérias políticas e sociais, das quais o cinismo é um dos atores mais importantes. Supor que o coração é naturalmente puro é um modo de não conhecê-lo. A modernidade trocou o sangue pelo sucesso, institucionalizando o desempenho.
A ação externa, objetificada e passível de fotografia, quantificação e verificação, independentemente da cor, do nome de família e do local de nascimento.
Ademais, o esporte é conflitivo: trata-se de inventar permanentemente ganhadores e perdedores, de entronizar deuses para tirá-los do pedestal no próximo campeonato. Nossa cabeça hierárquica não gosta de fazer isso, embora o futebol seja um esporte que, por constituição e por enfatizar o abaixo da cintura, as pernas e os pés (que viram luva, raquete e rede, além de servir para andar, correr e pular), conduza à ansiedade, fazendo do espectador interessado um “torcedor” que logo busca a consolação mística.
No tênis e no voleibol, o jogo anda pelos pontos. No futebol, o gol é uma parada que inventa estruturas. É um clímax equivalente ao orgasmo, a morte do inimigo e ao milagre religioso. Estão aí as múltiplas metáforas de vida e ressurreição que confirmam isso. Essa Copa é o mais acabado exemplo de globalização. Falamos muito e pouco entendemos de “globalização” e de redes (que não são de dormir embora assim o façam). Um mundo que obriga a ter atividades comuns, transforma sangue em dinheiro. Nossos universos locais que diferenciam confundem-se com universalidades. O futebol sem gols, defensivo e jogado de modo semelhante; o desaparecimento dos diferentes estilos que personalizavam o modo de jogar dos diversos países promove essa pasmaceira que todos comentam.
Se Max Weber fosse aficionado, diria: metemos o futebol na jaula de ferro da burocracia. Temos mais semelhanças e obediência a normas comuns do que as diferenças inusitadas que são a marca do carisma. Carisma é personalismo, graça, milagre, origem, alteridade e realização final; burocracia é rotina e despersonalização.
Isso posto, eu saio de férias e continuo em busca do milagre. Volto, queiram as fortunas, em agosto para dividir com todos vocês o que tenho encontrado e — eis o ponto que a modernidade esquece — como tenho sido achado pelas coisas da vida.
A modernidade trocou o sangue pelo sucesso, institucionalizando o desempenho
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