Preconceito e hipocrisia
ANNA PAULA UZIEL
O GLOBO - 16/05/10
Voltou ao cenário um debate iniciado no século passado e que há uma década provoca a sociedade a se posicionar: o direito à parentalidade por casais de mesmo sexo. Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça favorável à adoção de crianças por um casal de mulheres foi concomitante ao aparecimento de um projeto de lei do deputado federal Zequinha Marinho (PSC/PA), que “veda a adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo”.
Em 2001, a morte da cantora Cássia Eller inaugurou a discussão sobre parentalidade e homossexualidade: a Justiça, ao final de um intenso embate, concedeu a guarda de seu filho à sua companheira. Em 2005 e 2006, houve decisões sobre o reconhecimento da parentalidade por casais homossexuais em Bagé e Catanduva.
No final de 2009, o 3oPrograma Nacional de Direitos Humanos propôs ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos e recomendou ao Poder Judiciário a realização de campanhas de sensibilização de juízes para evitar preconceitos nesses processos de adoção — como aqueles em torno do temor do abuso sexual de meninos por parte de pais gays, o “risco” de que a criança se torne homossexual ou que a diferença entre os sexos não fique clara para aqueles que convivem com dois pais ou duas mães, causando-lhe transtornos psíquicos.
Tais percepções têm mudado. A recente decisão do Tribunal de Justiça gaúcho é um exemplo, ao reconhecer, “como entidade familiar merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família” — requisitos valorizados pelo TJ quando recebem requerentes, independentemente da orientação sexual. O acórdão foi incisivo: “É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (artigo 227 da Constituição).” Já para o deputado Marinho, “tais ‘casais’ — por assim dizer — não constituem uma família, instituição que pode apenas ser constituída por um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio ou pela estabilidade de sua união”, como diz no seu projeto.
Tal argumento tem a filiação biológica como padrão, desprezando o que a Justiça concebe como outro caminho para a parentalidade, como a adoção.
Sugere-se, assim, um retrocesso ao primado da biologia. É preciso afirmar que as dificuldades que se supõe que os filhos poderão enfrentar não são diferentes das que experimentamos em função da cor da pele ou do tipo de cabelo.
O bem-estar das crianças não está garantido pelo sexo dos pais e mães. Pensar nos filhos significa ampliar nossas concepções de família.
Anna Paula Uziel é psicóloga e Doutora em Ciências Sociais pelo UNICAMP. É professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
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