Direitos humanos
MERVAL PEREIRA
O GLOBO - 29/04/10
Em várias palestras aqui na Universidade de Córdoba, onde se realiza a Conferência da Academia da Latinidade com o tema central de busca de condições para o diálogo entre as culturas, um ponto recorrente foram os direitos humanos que, como ressaltou o secretário-geral Candido Mendes, não podem ser encarados como instrumentos de dominação ocidental e devem ter caráter universal
A limitação cultural do entendimento do que sejam os direitos humanos, porém, é uma realidade destacada por vários palestrantes. Enrique Larreta, diretor do Instituto de Pluralismo Cultural da Universidade Candido Mendes ressaltou que os direitos humanos têm ainda um tipo de aplicação regional.
“Na Europa, fica claro que a prioridade são os direitos individuais. Por exemplo, o passaporte para os perseguidos por estados, ou os direitos da mulher”.
Segundo ele, a União Europeia foi construída em boa medida em conflito com o totalitarismo soviético, e aí se afirmou a ideologia dos direitos humanos.
Há diferenças regionais importantes.
A morte recente do dissidente cubano na prisão só teve uma crítica formal de um governo da América Latina, que foi o México.
“O presidente da Bolívia, Evo Morales, chegou a dizer, com base em informações oficiais cubanas, que o morto era um delinquente comum.
Lula disse coisa parecida.” Isso demonstraria, segundo Larreta, que não existe uma cultura dos direitos humanos na América Latina, embora a esquerda latinoamericana tenha se aproveitado da política de direitos humanos ocidental para se proteger das ditaduras.
Na Ásia, lembra Enrique Larreta, que está envolvido em uma profunda pesquisa sobre os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China, os quatro países emergentes que serão potências mundiais preponderantes nos próximos 20 anos, segundo a Goldman Sachs), a China tem uma posição muito forte de soberania nacional que rejeita uma suposta interferência internacional, mesma posição dos governos militares latinoamericanos.
Larreta deixou claro em sua palestra que considera não ser admissível que uma visão culturalmente diversa sobre direitos humanos impeça o entendimento entre Ocidente e Oriente.
“Se os chineses assimilaram o marxismo, criado por dois escritores alemães, não há nenhuma razão para não assimilarem a democracia ocidental, da qual os direitos humanos fazem parte inseparável”, frisou.
O sinólogo francês François Julien, diretor do Instituto do Pensamento Contemporâneo, argumentou na sua palestra com a especificidade do pensamento chinês, mas se manteve em uma posição bastante universalista no sentido de que um horizonte de direitos humanos pode ser incorporado perfeitamente pela China.
Uma ideia prevaleceu nos debates, a de que todas as culturas se transformam.
A discussão sobre o uso da burca na França, por exemplo, que o presidente Nicolas Sarkozy quer banir em todas as situações, gerou diversos comentários.
O sociólogo Alain Touraine acha que não pode haver proibição através de uma nova legislação, que seria inconstitucional.
O professor da USP Renato Janine Ribeiro ressaltou em sua palestra que pesquisas mostram que a maioria dos franceses é a favor de proibir a burca, mas também favorável a manter o crucifixo nas paredes, o que indicaria que a burca é vista mais como um elemento de constrangimento dos direitos da mulher do que como símbolo religioso.
Já Enrique Larreta diz que o Estado francês é “laicoreligioso”, pretende que a cidadania seja um conceito místico. Ele também considera que os direitos humanos individuais são universalizáveis.
Como exemplo, lembrou que hoje em dia, em distintas sociedades como o Brasil e a China, cresce o número de indivíduos que vivem sozinhos, porque os meios tecnológicos permitem que se comuniquem na sua individualidade: pela internet, pelo celular.
Mas essas pessoas exigem seus próprios direitos.
“A individualização da sociedade cria condições para que de alguma maneira seus direitos sejam coletivos”, comentou Larreta.
Renato Janine Ribeiro chamou a atenção para o fato de que a necessidade de pertencimento a um grupo está muito presente no mundo atual, e, mais do que significar uma escolha individual, significa que existe uma identidade coletiva que precede toda forma de liberdade.
Em vez do cartesiano “penso, logo existo”, a definição seria “nós somos, logo eu sou”. Ou “eu pertenço a esse determinado grupo porque livremente o escolhi”.
O renovado conceito de relações sociais trazido pelos novos meios de comunicação foi também debatido em diversas sessões, com visões distintas de sua repercussão na sociedade.
Janine Ribeiro lembrou que um dos módulos do Linux, o sistema operacional aberto da internet, chamase “ubuntu”, que, num dialeto tribal da África do Sul, significa “sou o que sou por que pertenço a um grupo”.
Candido Mendes referiu-se à nova tecnologia da informação como a “agora eletrônica”, numa referência ao espaço de debate da antiga Grécia, mas mostrou-se pessimista com relação à possibilidade de controle das informações de sistemas de buscas como o Google.
Citou um julgamento nos Estados Unidos sobre o controle de tempo para determinadas informações que indicaria que o sistema está sendo manipulado para facilitar alguns tipos de informações e dificultar outras, o que sugere que esse novo mundo tecnológico da informação pode reservar novas formas de totalitarismos.
Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal e Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações, resumiu a preocupação geral em sua fala na abertura do seminário: disse que o crescente apoio da extrema-direita e atitudes etnocêntricas em certas partes do mundo têm que ser combatidas porque não se pode permitir, citando a filósofa Anna Arendt, que a “banalidade do mal” se torne realidade.
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