Bodes expiatórios
Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 29/04/10
Grécia é o Lehman Brothers das nações, ambos punidos como exemplo. Um trouxe ruína. A Grécia trará o quê?
Completamente abatida, sem qualquer chance de chegar ao mês que vem sem ajuda dos parceiros da União Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), a Grécia não é só o último elo rompido da cadeia de infortúnios iniciada em setembro de 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers. Ela é o Lehman Brothers das nações.
Um e outra são vitrines de um processo ensandecido de acumulação de riqueza criada, primeiro, por deficits e dívidas nacionais, com EUA à frente. E, depois de 2000, potencializada pelo endividamento maciço de bancos, empresas e pessoas, culminando, na fase terminal da ciranda, que continua ativa, com a securitização de dívidas e a sua conversão em ativos financeiros re-empacotados e vendidos.
São os tais derivativos, que geraram novas dívidas, mas cada vez mais distantes do fato real que as sustentavam no início da cadeia de alavancagem. Tal sistema, que permitiu a ascensão das economias emergentes, a chinesa em especial, mas também a brasileira, graças à pressão dos derivativos sobre os preços dos metais e alimentos no mercado de commodities, nunca foi bem compreendido antes da crise.
Quase três anos depois, continua misterioso para a maioria dos economistas do “main street” — ou a rua principal. Os empresários, políticos e governantes condenam a especulação dos bancos, realçam o poder saneador do Estado, mas seguem ignorando o que precipitou a onda de prosperidade que vinha do início da década de 2000.
A economia global, e em maior ou menor escala os países em geral, ganhou musculatura ingerindo o anabolizante dos derivativos, meio de multiplicação do crédito para além de seu fato gerador. Quem o usou para criar capacidade produtiva, como a China, continua bem na fotografia da economia internacional. Quem o usou para bancar o consumo, mas sobre uma base produtiva consolidada, está avariado, mas pode reerguer-se, caso dos EUA, apesar da jogatina de seus bancos.
Enfim, quem o usou para sustentar o consumo e a renda assentada sobre bases econômicas estagnadas ou não competitivas, como é o caso da União Europeia, está no mato sem cachorro. O desemprego já passa de 10%, atinge 20% na Espanha, e, segundo o consenso, levará uma década até voltar ao nível pré-crise. Alemanha e Grécia — seguida de Portugal, Itália, Irlanda, Espanha — são as situações extremas.
A cigarra da fábula
Potência industrial e até 2008 o maior exportador do mundo, posto perdido para a China, a Alemanha tem força para levantar a Europa. A questão é se o fará para salvar o euro, se a maioria da população reprova o socorro aos vizinhos combalidos, sobretudo a Grécia.
A Grécia é a cigarra da fábula: gastou mais do que podia, fajutou as contas nacionais para ocultar sua situação terrível — tal como a banca de Wall Street —, o que só foi revelado pelo novo governo eleito em outubro de 2009, do primeiro-ministro socialista George Papandreou, de quem se cobra um programa de corte de gastos como condição para o país ser resgatado pela força tarefa da UE-FMI.
Alemanha como bedel
A Grécia está para o sistema monetário comum europeu como o Lehman Brothers estava para os EUA. Ele foi a pique não só por esgarçar a jogatina no cassino do mercado financeiro e ser a peça mais fraca de Wall Street e com menos conexões políticas em Washington.
O governo Bush julgava necessitar de ação exemplar para aplacar a crítica ao socorro mais ou menos sub-reptício até então concedido à banca. Começa aí a ruína seriada. Na Europa, há um juízo parecido quanto à Grécia: tem que aceitar penitência fiscal para ter ajuda.
A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, repetiu o veredicto nesta quarta-feira: a Grécia deve aceitar um “programa ambicioso”. Pelo que diz, um horizonte radiante espera a Grécia, se for boazinha.
Uma lição reprovada
É aí que a Grécia volta a se assemelhar ao Lehman Brothers: quer-se dela o exemplo para, assim, convencer outros governos europeus com o pires na mão a fazer o que também lá atende pela expressão “lição de casa”, ou seja, navalhar o gasto público. Vai conseguir?
Com deficit fiscal de 13,7% do PIB em 2009, o governo Papandreou promete cortá-lo para 8,7% este ano e 3% até 2012, padrão na Zona do Euro, mas relaxado desde a grande crise. Só que o país tem hoje necessidade de financiamento em relação à receita fiscal de 118%, segundo a Leto Research. A austeridade pedida pela União Europeia é recessiva. A base exportadora do país é ínfima. Tem algo errado. A receita vai cair, a dívida, aumentar. Está bem é para Alemanha & Cia.: poderá evitar um dominó de quebras e salvar a cara do euro.
Sacrifício por nada?
A receita clássica de corte de gasto público funciona onde há uma base produtiva para ocupar o espaço aberto pela retração estatal e se expandir, gerando as divisas que vão solver o estoque de dívida, acrescido da refinanciada. Foi assim que o Brasil saiu do buraco escavado pelo expansionismo do período militar. No meio do processo, houve a moratória de 1987, que levou à renegociação da dívida externa. O custo baixou. E a recessão criou “excedente” exportável para solver a retomada do fluxo externo de pagamentos.
A Grécia, dependente do turismo para gerar moeda forte, tem essas condições de produção doméstica para exportar? Essa é a questão. A Europa pede aos gregos um sacrifício que pode arruiná-los mais do que já estão. Um preço alto para evitar o estigma da insolvência.
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