José Serra não é Carlos Lacerda
FOLHA DE SÃO PAULO - 04/04/10
A agressividade destruidora afogou a biografia do maior governante da história do Rio
COMO ERA previsível, uma única palavra -"roubalheira"- deu o tom do discurso de despedida de José Serra. Pena. Foi uma fala tediosa, mas uma só palavra desviou o curso de uma reflexão em torno de ideias, honradez e sobriedade administrativas. Ela não caiu como cabelo na sopa. Foi um flerte com "a busca da notícia fácil" que o próprio Serra criticaria no mesmo discurso.
Com suas pressões e ansiedades, as campanhas moldam os candidatos. Quando entrou na disputa pela Presidência, Barack Obama não tinha proposta para a reforma dos planos de saúde. Juscelino Kubitschek nunca pensara em construir Brasília até que, meses antes da eleição, um estudante chamado Toniquinho perguntou-lhe se cumpriria o dispositivo constitucional que previa a transferência da capital para o Planalto.
Na atual campanha há uma energia interna no mandarinato oposicionista que procura um foco na denúncia da amoralidade do governo de Lula. Foi essa força que levou o "roubalheira" para o discurso de Serra.
Se essa tática prevalecer, acarretará vários riscos, todos lesivos ao nível político do país e à biografia do candidato. O combate à corrupção não deve ser plataforma de governo, mas pressuposto. O país sofre com o desembaraço dos mensaleiros e com a proteção paternal que Lula lhes dá, assim como padece com o silêncio tucano diante da cassação do mandato, pela Justiça, de seu governador da Paraíba. O mais ilustre detento do sistema carcerário nacional é o ex-governador José Roberto Arruda, o queridinho do DEM, que chegou a aspirar à Vice-Presidência na chapa de Serra.
Dois presidentes chegaram ao Planalto montados na bandeira da moralidade: Jânio Quadros (seu símbolo de campanha era uma vassoura) e Fernando Collor. Nenhum dos dois concluiu o mandato, e Jânio tornou-se o único governante nacional com conta secreta no exterior disputada em juízo. Esses exemplos não devem estimular complacência, apenas ilustram que o moralismo é um refúgio habitual do corrupto.
Serra nada tem a ver com Jânio e Collor. Faltam-lhe até mesmo a teatralidade, o oportunismo e a mediocridade administrativa. Pelas obsessões, pelo estilo e pela visão de governo, ele se parece com Carlos Lacerda, seu adversário juvenil. Lacerda foi o maior governante da história do Rio de Janeiro (1960-1965). Fez a adutora do Guandu e resolveu o problema secular do abastecimento de água da cidade. Urbanizou o Aterro do Flamengo, abriu o túnel Rebouças e remendou a rede escolar pública. Desse Lacerda, o "Carlos" dos amigos, pouco se fala. O personagem da história foi outro, o "Corvo" dos inimigos, que carimbava "roubalheira" nos adversários. Demolidor audaz, escondia em ímpetos de calculada agressividade um temperamento egocêntrico e depressivo. Carregava nas costas o suicídio de Getúlio Vargas (cujos capangas tentaram matá-lo em 1954), assim como carregou a deposição de João Goulart e um pedaço da ditadura que se instalou em 1964. Vale ouvi-lo:
Sobre Vargas: "Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar".
Sobre Juscelino Kubitschek: "Um político notoriamente desonesto, cujo enriquecimento, seu e de seus amigos, constitui uma afronta ao país".
Sobre João Goulart: "Eu agarro o touro pelos chifres". Diante dos risos da plateia, fez um adendo infame: "E ele os tem".
Sobre o presidente Castello Branco: "O marechal é um anjo da rua Conde Lages". (Numa referência aos santos colocados nas salas de estar dos bordeis da Lapa.)
Nada a ver com Serra. Numa trapaça do tempo, ele recorreu ao "roubalheira" no dia 31 de março, exatos 46 anos depois do levante militar que o levou ao exílio e deu a Lacerda um breve período de esplendor.
Uma campanha desqualificadora, que fecha seu foco na denúncia da corrupção alheia, precisa que o candidato puxe o samba. Para aprender esse papel, Serra tem idade demais e treino de menos.
MADAME NATASHA
Madame Natasha sabe que terá muito trabalho durante a campanha eleitoral e já concedeu uma de sua bolsas de estudo a José Serra por um trecho de seu discurso de despedida do governo de São Paulo: "Repudiamos protagonismo sem substância que alimenta mitologias". Ele quis dizer o seguinte: "Dilma é um pastel de vento vendido à sombra do culto à personalidade de Lula".
DEDO DISCRETO
A costura do deputado Antonio Palocci foi um fator importante para assegurar a permanência de Henrique Meirelles na presidência do Banco Central.
MANGABAMA
A recente biografia do companheiro Obama, escrita pelo jornalista David Remnick, editor da "The New Yorker", lista duas grandes influências sobre Barack Obama durante o seu curso de direito em Harvard. A maior delas foi a do constitucionalista Laurence Tribe, de quem o companheiro foi assistente de pesquisas em três projetos, entre eles no magnífico livro "Aborto: Um Choque de Absolutos". A outra influência foi a de Roberto Mangabeira Unger, cujos cursos são evitados pelos alunos mais conservadores. Obama frequentou dois: "Jurisprudência" e "Reinventando a democracia". Remnick entrevistou Obama e trocou e-mails com Mangabeira.
Num deles, Mangabeira, defensor do impedimento de Lula e, posteriormente, seu ministro, disse o seguinte: "Eu sou um esquerdista e, por convicção e por temperamento, um revolucionário..." Em 2005, quando Obama era apenas uma promessa, Mangabeira tinha poucas palavras para ele.
HORA DO BISPO
O praga da pedofilia que corrói o pontificado de Bento 16 (82 anos) tem menos a ver com ele do que com a máquina da Cúria Romana. Pode-se esperar que seu substituto será um cardeal com longa experiência numa arquidiocese, função na qual sujam-se os pés no barro. Essa tendência manifestou-se em 1978, quando foi escolhido Albino Luciani, bispo desde 1958. O pontificado de João Paulo 1º durou 33 dias e seu sucessor, Karol Wojtyla, assumiu depois de 16 anos de dureza como arcebispo de Cracóvia. A experiência episcopal de Joseph Ratzinger durou apenas quatro anos, durante os quais, na melhor das hipóteses, ele se ocupava pouco dos assuntos da Arquidiocese de Munique.
MEGALOLULISMO
Nosso Guia disse outro dia que "eu fiquei 27 anos dentro de uma fábrica". Lula teve seu primeiro emprego industrial em 1959 e em 1977 trocou o torno da Villares por uma mesa no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Faltam nove anos para fechar a conta.
PRIVATARIA 2.0
No mesmo mês em que penou um quebra-quebra por conta de maus serviços e foi multada porque seus funcionários chicotearam passageiros em abril do ano passado, a SuperVia, concessionária de trens do Rio de Janeiro, teve seu contrato prorrogado por mais 25 anos pelo governo do Estado.
Não passa pela cabeça de ninguém que a prorrogação tenha sido um reconhecimento à qualidade de sua operação. Pode ter ocorrido uma nova modalidade de privataria: espicha-se a concessão para segurar o valor da empresa caso ela seja vendida. O governo do Rio adoraria vê-la na mão da OAS ou da Odebrecht.
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