sexta-feira, março 26, 2010

JANIO DE FREITAS

As casas do silêncio
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/03/10


O jornalismo precisa de críticas, inclusive das de Lula, e não de cobranças de louvação quando o mais generoso é o silêncio




AINDA QUE Lula diga de sua acusação à "má-fé da imprensa" que apenas "mostra o que [nela] está errado", como "um alertador" -contra algo que não quis ou não pode dizer-, o fato é que faz do seu direito de crítica uma evidência do erro de sua autoavaliação. Disso é exemplo perfeito a frase que lhe pareceu retratar a "má-fé": "Acabei de inaugurar 2.000 casas, não sai uma nota. Caiu um barraco, tem manchete. É uma predileção pela desgraça." Deveria, ao menos poderia, sentir-se envergonhado com a constatação de que suas 2.000 casas não valem, no jornalismo, um barraco soterrado.
O que são 2.000 casas? Os números oficiais do governo Lula reconhecem o deficit habitacional de 6 milhões de casas. Seriam 6 milhões de famílias -crianças, mães e pais, talvez avós- desprovidos do que possa ser chamado de casa, com exagero embora. O que são, diante desses milhões, 2.000 casinhas? Ainda mais para "ter manchete".
Mas o deficit habitacional no governo Lula não é de 6 milhões de casas. É maior, não se sabe quanto maior, não se sabe qual é. Desde que os núcleos de pobreza multiplicaram ao incontável as suas células, umas apoiadas nas outras, sobre as outras, debaixo das outras, e em cada um desses núcleos se instalaram núcleos de criminalidade armada, desde então a liberdade ou mesmo a possibilidade física de qualquer contagem se tornou inviável. E assim é pelo país todo.
O que são, diante disso, 2.000 casas? Ainda mais para merecer manchete. São um fato humilhante. Para honrar um governo e mostrar um presidente estadista, deveriam ser 2.000 por dia. Indústrias trabalhando para isso, milhões de empregos, crianças, mães, pais e talvez avós ganhando o chão sólido e o teto firme, o saneamento e a água corrente que até hoje não sabem se um dia alcançarão.
O olhar do jornalismo para um barraco arruinado não é predileção, não é atração. É repulsa, é pasmo, é emoção. Não do jornalismo: dos seres humanos. Dos que são leitores, espectadores, ouvintes -e, valei-os Senhor, jornalistas. É o valor da vida, não é o barraco. É o peso da tragédia, da avalanche e da enchente fatais, do desastre aéreo, do assassinato horrorizante.
A parte negativa que cabe ao jornalismo, neste capítulo, pode ser a da má medida, alguns vícios da facilidade e, até como especialidade de conhecido ramo, a exploração do sensacionalismo. Bom ou mau, o jornalismo supõe oferecer o que o público deseja ou, no mínimo, aceita. Nada de inocentar a imprensa.
Estamos fazendo no Brasil um jornalismo descuidado, cheio de fantasias ilusionistas, de enchimento de espaço a granel. Um jornalismo que precisa de muitas críticas. Inclusive das de Lula, mas que sejam críticas de fato, e não cobranças de louvação quando o mais generoso é o silêncio, porque o devido é a crítica.

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