2013
Com o decreto editado três anos antes, criminosos passaram a ter direitos quase iguais aos de suas vítimas
O CASALZINHO conversava no jardim em frente à casa da menina. Passava das nove da noite daquela quinta-feira, dezembro de 2013, e o assunto era o vestibular. Ele, 19 anos, estudava duro para a segunda fase dos exames: queria ser advogado, defender a Justiça, ajudar o país a ser mais equitativo e moderno na área jurídica.
Entusiasmado, ele explicava à namoradinha os seus projetos; ela, no esplendor dos 17 anos, escutava encantada e feliz por compreender que o vestibulando compartilhava seus sonhos e a incluía neles. Eram duas almas se tocando, duas vidas se entrelaçando na esperança de participarem da construção de um mundo melhor.
Começou uma garoa fina, rala, e resolveram ir embora. Quando se preparavam para atravessar a rua, um carro parou de repente à beira da calçada e, antes que tivessem tempo de entender o que se passava, dois brutamontes os puxaram para o banco de trás e partiram em alta velocidade.
No matagal, o futuro defensor dos oprimidos foi torturado até a morte, sob o olhar desesperado da menina, que foi, depois, estuprada, esbofeteada e, por fim, estrangulada por quatro marginais. Seus corpos foram encontrados dois dias depois, e a dor das famílias e amigos pode apenas ser imaginada. A imprensa não podia contar toda a tragédia, em nome da proteção dos direitos humanos...
Mas a Polícia foi eficiente e, em três dias, prendeu os bandidos. E, antes que a Justiça cumprisse seu papel que levaria às grades aqueles bárbaros, as famílias foram chamadas para um diálogo com eles.
É que, três anos antes, fora publicado um decreto para garantir os direitos humanos. Era um decreto bastante extenso, tratando de mais de 500 assuntos, desde o acompanhamento editorial dos meios de comunicação até a apuração de crimes ocorridos no regime militar; propunha proteger o idoso, combater as desigualdades salariais, limitava a exposição de símbolos religiosos em locais públicos e estabelecia que, quando uma propriedade rural fosse invadida, seriam feitas audiências públicas antes que um juiz, usando suas prerrogativas, concedesse liminar para a reintegração de posse.
A enorme polêmica gerada pelo decreto foi transferida para dentro do Congresso Nacional, que faria as leis implementadoras das intenções nele contidas. Era ano de eleições.
E embora, mais tarde, alguns bodes fossem tirados da sala (especialmente para atender os procedentes reclamos de militares e da Igreja), os setores mais discriminados pelo despeito ou pelo pouco-caso acabaram sendo prejudicados. E vieram reflexos piores, tirando dos juízes sua condição de arbitrar. Até mesmo o direito de propriedade, salvaguardado na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e na nossa Constituição, ficou reduzido.
E criminosos passaram a ter direitos parecidos com os de suas vítimas. Com as leis que vieram no rastro do decreto, aquelas pobres famílias, três anos depois, tiveram de se sentar diante dos algozes de seus filhos para dialogar com eles, antes que o juiz os mandasse para a cadeia.
Preconceitos, idiossincrasias, ressentimentos, revanchismo e radicalismo nunca foram e nunca serão sementes do bom-senso, do equilíbrio, da justiça, da democracia e da paz. Quem planta aquelas sementes, sem querer ou querendo, colhe frutos idênticos.
ROBERTO RODRIGUES, 67, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.
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