Não há olhos azuis no Haiti
FOLHA DE SÃO PAULO - 16/01/10
De certa maneira, o país é um Afeganistão das Américas; tudo de que não precisa é de uma conferência de ajuda
É COMOVEDORA a iniciativa do presidente francês Nicolas Sarkozy de convocar conferência internacional para analisar a ajuda ao Haiti. Comovedora não por mostrar um ímpeto humanitário admirável, mas uma admirável compulsão pelos holofotes da mídia.
Já imaginou a quantidade de câmeras e microfones à volta de chefes de governo como o próprio Sarkozy, Barack Obama, Luiz Inácio Lula da Silva e o canadense Stephen Harper, que seriam os chamados para a conferência, em meio à comoção global causada pela tragédia haitiana?
Seria bom que, pelo menos uma vez na vida, os governantes fossem claros: tudo de que o Haiti NÃO precisa é de uma conferência para discutir como ajudá-lo. Precisa de ajuda, que, sem qualquer tipo de conferência, já começa a chegar, mas que será claramente insuficiente se o seu caso não servir para mudar a maneira como a comunidade internacional se organiza e atua.
De alguma maneira, o Haiti é o Afeganistão das Américas.
O chanceler Celso Amorim cobrou incontáveis vezes de seus parceiros envolvidos com o Haiti o aumento da cooperação. Seu argumento era basicamente o mesmo que Barack Obama passou a utilizar recentemente para o Afeganistão: tropas, como as brasileiras que estão no Haiti, são necessárias para dar um mínimo de estabilidade a uma situação caótica.
Mas, se além da estabilização, se pretende que o país funcione, que haja um poder público minimamente organizado e confiável, capaz de fornecer serviços essenciais, então é preciso muito mais recursos financeiros, o envio de especialistas em construção institucional e a disposição de permanecer no país o tempo necessário para a reconstrução.
Antes do terremoto, o Haiti já tinha necessidade de tudo isso. A revista "Foreign Affairs" listou-o no 12º lugar entre os 60 "Estados falidos" do planeta. Transparência Internacional diz que se trata do país mais corrupto do mundo.
É evidente que uma ação internacional mais firme e mais generosa não teria evitado o terremoto. Mas provavelmente teria reduzido um pouco que fosse o caos posterior.
Não serão conferências de doadores que fortalecerão o Estado e a sociedade, no Haiti ou em qualquer outra parte. Os exemplos abundam: vira e mexe, há uma conferência de doadores do Afeganistão, sem que se possa dizer que o país está hoje melhor do que estava em 2001 quando foi invadido pelos Estados Unidos e parceiros, para afastar um governo (o do Taleban), que impunha não um Estado forte, mas violento. Como era o Haiti dos Duvalier, aliás.
De resto, não foi preciso convocar conferência de governantes para socorrer os bancos, que não eram vítimas e, sim, agentes do terremoto financeiro iniciado em 2007.
O problema é que os banqueiros, como diria o presidente Lula, são "brancos de olhos azuis". Já no Haiti, na África, no Afeganistão, quase não há olhos azuis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário