quinta-feira, janeiro 28, 2010

MARCOS VINICIOS VILAÇA

Além dos tempos

O GLOBO - 28/01/10


No começo do século XX, quando aconteceu no Rio de Janeiro a III Conferência Pan-Americana, os delegados estrangeiros se abismaram com a popularidade de Joaquim Nabuco. Gilberto Freyre escreveu que, a partir dali, Nabuco passou a ser visto como o grande brasileiro do seu tempo e de todos os tempos.

Alceu Amoroso Lima completaria: Nabuco foi a imagem mais fulgurante do humanismo brasileiro, e a mais harmoniosa da nossa história cultural.

Nas comemorações do centenário de sua morte, que a Academia Brasileira de Letras está promovendo, essa visão dele como modelo certamente se imporá em definitivo na cultura dita canônica, decerto ainda um tanto desatenta ao que Eduardo Portella chama “lógica exterminadora do Modernismo”.

Joaquim Nabuco, como um operador da transformação social, trouxe o povo para o combate pela liberdade. Não o contentava apenas o abolicionismo como mudança: queria a verdadeira transformação.

E disse: “Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão” e implementar a “democratização do solo”.

Por tudo isto, “Minha formação” é o seu melhor retrato e o seu melhor momento, inclusive como restituição do cidadão do mundo, restituição do extraviado , ao seu chão. Ele sempre disse: “Sou cativo de Pernambuco.” A Academia é em grande parte o contraste entre dois homens inseparáveis: Machado de Assis, o humilde que se fez aristocrata das letras, e Nabuco, que, pertencendo à hierarquia do Império, se fez humilde para melhor escutar os gritos de liberdade.

Atentemos para o que disse, insuspeitamente, Graça Aranha: “Na sua vida precária, sem pouso certo, sem meios, perseguida pela ironia, atacada pelo despeito, a Academia encontra a sua resistência moral em Machado de Assis e Joaquim Nabuco, o par glorioso que ela pusera à sua frente, e cuja assistência justificaria diante do público a sua aparição no caos literário.” Explicase que a Academia registre o centenário de morte de Joaquim Nabuco com permanente curiosidade e completa empatia, tal como fez em relação a Machado de Assis.

Promoveremos ciclo de conferências, re edições de algumas de suas obras, iremos a Londres e a Washington para comemorações especiais com a intelectualidade dessas cidades nas quais serviu como embaixador, iremos nos curvarreverentes no Recife e em Massangana, onde ouviremos as badaladas do sino da capela de S. Mateus, o seu “muezzin íntimo”, como belamente recordou Evaldo Cabral de Mello.

Tudo isso se fará como ensinou Agostinho de Hipona a respeito do triplo presente: o presente do passado — a memória; o presente do presente — a percepção; o presente do futuro — a esperança.

Temos certeza de que os brasileiros estarão ainda mais convencidos da sabedoria dele recordando o que, em 1909, escreveu no seu diário pessoal: “O corpo pode ser demolido, não o seja nunca o espírito.” E juntos atentaremos para a lucidez de quem, há cem anos, enxergando da vida o claro/escuro e mesmo já com a voz a falhar, segredou ao médico que o atendia: “Doutor, pareço estar perdendo a consciência...

Tudo, menos isso!...” Nabuco não perdeu a consciência.

Sua consciência está conosco.

MARCOS VINICIOS VILAÇA é presidente da Academia Brasileira de Letras.

“O corpo pode ser demolido, não o seja nunca o espírito”

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