Outra carta da Dorinha
O GLOBO - 20/12/09
de significado obscuro – um javali comendo debêntures – num canto.
“Caríssimo! Beijíssimos! Foi um sonho o responsável pela minha súbita aquisição de uma consciência ecológica. Como você sabe, sempre acreditei que o aquecimento global seria compensado por mais e melhores aparelhos de ar condicionado, e não tínhamos com o que nos preocupar. Mas na outra noite eu estava dormindo, para variar um pouco, com meu próprio marido, cujo nome me escapa no momento, e tive um sonho estranho. Sonhei que estava na cama na nossa casa em Angra e alguém me enlaçava com um braço. Eu já ia até dizer ‘Agora não, querido, seja quem for’ quando notei que o braço era grande, molenga e tinha ventosas. Era um tentáculo de polvo! O mar tinha subido e entrado no nosso quarto. Nossa cama estava boiando. Tudo no quarto estava boiando. A água não parava de subir. E, como se isto não bastasse, o polvo começara a mordiscar minha orelha. Acordei num pulo. Pela primeira vez, me dei conta de que quando os mares subirem, nos afogaremos todos, democraticamente, e os condomínios fechados à beira-mar serão os primeiros a desaparecer. No mesmo dia convoquei uma reunião das SS e decidimos mandar uma delegação a Copenhagen para defender nossa classe. Infelizmente, a conexão era em Paris, o avião para Copenhagen iria demorar, fomos até a cidade fazer compras, o tempo estava lindo... Resultado: continuamos em Paris, de onde te escrevo. Não chegaremos a Copenhagen a tempo de salvar o mundo. Pelo menos, não este. Da tua Dorinha”.
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