domingo, dezembro 20, 2009

LUIS FERNANDO VERISSIMO

Outra carta da Dorinha

O GLOBO - 20/12/09

Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, nunca revela sua idade, e atribui perguntas a este respeito à “curiosidade mórbida”, mas admite que esteve presente em muitos momentos históricos. Às vezes, inclusive, como coadjuvante, embora negue que tenha liderado o troca-troca de casais no baile da Ilha Fiscal. Dorinha e seu grupo de pressão, as Socialaites Socialistas, que lutam pela implantação no país do socialismo soviético na sua fase mais avançada, que é a volta ao tzarismo, têm se envolvido em movimentos importantes do Brasil e do mundo. Uma das Socialaites, Tatiana (“Tati”) Bitati, chegou a participar de uma invasão de terras com o MST, até se dar conta que as terras eram dela. Agora mesmo, o grupo mandou... Mas deixemos que a própria Dorinha nos conte em sua carta. Escrita, como sempre, com tinta grená em papel púrpura, com um brasão
de significado obscuro – um javali comendo debêntures – num canto.
“Caríssimo! Beijíssimos! Foi um sonho o responsável pela minha súbita aquisição de uma consciência ecológica. Como você sabe, sempre acreditei que o aquecimento global seria compensado por mais e melhores aparelhos de ar condicionado, e não tínhamos com o que nos preocupar. Mas na outra noite eu estava dormindo, para variar um pouco, com meu próprio marido, cujo nome me escapa no momento, e tive um sonho estranho. Sonhei que estava na cama na nossa casa em Angra e alguém me enlaçava com um braço. Eu já ia até dizer ‘Agora não, querido, seja quem for’ quando notei que o braço era grande, molenga e tinha ventosas. Era um tentáculo de polvo! O mar tinha subido e entrado no nosso quarto. Nossa cama estava boiando. Tudo no quarto estava boiando. A água não parava de subir. E, como se isto não bastasse, o polvo começara a mordiscar minha orelha. Acordei num pulo. Pela primeira vez, me dei conta de que quando os mares subirem, nos afogaremos todos, democraticamente, e os condomínios fechados à beira-mar serão os primeiros a desaparecer. No mesmo dia convoquei uma reunião das SS e decidimos mandar uma delegação a Copenhagen para defender nossa classe. Infelizmente, a conexão era em Paris, o avião para Copenhagen iria demorar, fomos até a cidade fazer compras, o tempo estava lindo... Resultado: continuamos em Paris, de onde te escrevo. Não chegaremos a Copenhagen a tempo de salvar o mundo. Pelo menos, não este. Da tua Dorinha”.

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