J. R. Guzzo
Medo zero
"Há muito tempo, na verdade, a divulgação de um escândalo
deixou de inibir outro; ser pego em flagrante é a última
de suas preocupações"
Aí estão eles, mais uma vez, exibindo ao público a comédia que representa, melhor que qualquer outra coisa, a política e os políticos brasileiros de hoje. Muda o palco – desta vez ele está armado no governo do Distrito Federal, em Brasília, e a direção do espetáculo cabe ao DEM. Mas a cena principal é a mesma de sempre: autoridades com privilégios que as diferenciam do "cidadão comum" enfiam pacotes de dinheiro vivo nos bolsos, nas bolsas e, em pelo menos um caso, nas meias. Graças à tecnologia cada vez mais eficaz utilizada atualmente para gravar esse tipo de flagrante, os detalhes do vídeo em que todos eles aparecem são uma maravilha do cinema-verdade. Um deputado, justamente o da meia, pode ser visto em pé, sentado e de frente, com um maço de dinheiro na mão, outro que desliza para dentro do bolso direito do paletó, mais um que desaparece nas regiões inferiores da perna esquerda. Uma deputada vai jogando rapidamente numa bolsona escura, um depois do outro, os pacotes que recebe. Em outra imagem, três beneficiários do esquema, abraçados, fazem uma oração de agradecimento e pedem a proteção dos céus para quem lhes pagou. O próprio governador, José Roberto Arruda, figura de destaque na oposição nacional ao governo Lula, recebe o seu reclinado numa poltrona.
Um "cidadão comum", de novo ele, seria capaz de desconfiar, vendo isso tudo, que alguma coisa errada está acontecendo ali. Corrupção, talvez? Depende. Pode ser, pode não ser. O governador Arruda, por exemplo, diz que não é; segundo garantiu, o dinheiro entregue a ele serviu para comprar panetones que foram distribuídos às crianças pobres de Brasília. Os demais ainda estão pensando no que vão contar; é certo que alguma coisa eles acabarão achando. Nada de acusações precipitadas, portanto. Antes de dizer algo, é preciso esperar até que se esclareça tudo muito direitinho e a culpa dos envolvidos fique 100% comprovada; do contrário, vamos cair no "denuncismo" e na "criminalização" da vida política brasileira. É exatamente isso, em todo caso, o que vem nos ensinando há sete anos seguidos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: em todas as denúncias de ladroagem que apareceram nesse período, ele jamais deixou, nem uma vez, de tomar a defesa dos denunciados, em nome da necessidade de não se cometerem possíveis injustiças contra eles. Como diz o presidente, é preciso "acabar de uma vez por todas, neste país", com a mania de acusar as pessoas sem ter certeza absoluta nas provas. E quando alguém é flagrado no ato, com vídeo e áudio, recebendo um bolo de dinheiro? Também não serve. "A imagem não fala por si", afirmou Lula sobre o caso do DF. O que seria preciso, então, para provar alguma coisa? O presidente não entra em detalhes. Tudo o que ele diz o tempo todo é que "não é possível" ficar fazendo julgamentos apressados. Vale para a roubalheira do governo. Vale também, agora, para a roubalheira da oposição.
Na verdade, segundo a visão defendida pelo presidente da República, suspeito, no fundo, é quem faz a denúncia. É sempre a mesma história. O que haveria "por trás" das acusações? "A quem" elas interessam? Quem vai sair ganhando? Essa atitude, é claro, fez escola rapidamente dentro do governo; dez entre dez ministros, hoje, inspiram-se no evangelho de Lula e sustentam que ninguém é culpado de nada. Os integrantes do núcleo duro do mensalão, por exemplo, contam com o apoio aberto da ministra e candidata Dilma Rousseff para voltar a ocupar cargos superiores no PT. "Até agora não temos nenhuma dessas pessoas julgada e condenada", diz Dilma. "Acho absolutamente normal que elas exerçam os seus direitos políticos." Há recomendação expressa, enfim, para ninguém acreditar no que ouve, vê ou lê nos meios de comunicação. "A imprensa é paga para mentir", garante o ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Nenhuma surpresa, com todo o estímulo que recebe de cima, que o show continue, sobretudo quando os envolvidos podem contar com a proteção de leis que tornam praticamente impossível uma condenação – não os obriga, sequer, a devolver o dinheiro. Há muito tempo, na verdade, a divulgação de um escândalo deixou de inibir outro; ser pego em flagrante é a última de suas preocupações. Nada comprova isso tão bem quanto um aspecto realmente notável do caso de Brasília. O homem que distribuía o dinheiro, um ex-secretário de estado, é o mesmo que filmava tudo; seu apelido, aliás, é "Rei do Grampo".
Chegamos, enfim, ao medo zero.
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