Lula e o modelo da vaca por repolhos
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/11/09
As três maiores invenções desde o começo da civilização foram o fogo, a roda e o banco central, segundo o humorista americano Will Rogers (1879-1935). Paul Samuelson usou essa frase, ou uma versão dela, como epígrafe de um capítulo de seu manual de introdução à análise econômica. A referência ao banco central foi uma evidente gozação, mas a moeda caberia numa lista das grandes criações. Muito antes de haver uma autoridade monetária, os homens foram capazes de reduzir, por meio de uma convenção, as complicações do escambo. Muito dura devia ser a vida de quem tinha vacas e precisava de trigo, mas não encontrava quem tivesse trigo e desejasse vacas. O problema seria resolvido se o plantador de trigo procurasse repolhos e o plantador de repolhos quisesse vacas. Faltaria resolver um detalhe: que fazer, se uma vaca valesse duas centenas de repolhos e o vaqueiro só precisasse de cem?
A vida ficou muito mais fácil para esses produtores quando se escolheu algum objeto conveniente para funcionar como unidade de conta e meio de troca. Esse mesmo objeto poderia servir como reserva de valor. Seria possível acumular numa caixa meios de compra correspondentes a muitas vacas ou carroças de trigo. Esse papel foi atribuído a vários objetos, por diferentes civilizações, ao longo de milênios, até se chegar à moeda abstrata. Desde a Antiguidade, no entanto, alguns tipos de moeda, especialmente o ouro e a prata, serviram para trocas não só no interior de um grupo, mas também entre produtores e comerciantes de nações diferentes. Modernamente, essa função mais ampla foi conferida a certas moedas nacionais de grande aceitação internacional. O dólar é hoje o exemplo mais notável.
Substituir o dólar por moedas nacionais de curso restrito, como o real e o peso argentino, é recuar na história e reaproximar o comércio internacional do escambo. Ninguém comercia com a maior parte do mundo usando dinheiro do Brasil, da Argentina, do Paraguai ou da Bolívia. A maior parte das moedas nacionais pode servir - e, mesmo assim, muito limitadamente - para o comércio bilateral. Pagamentos em reais e em pesos foram permitidos a empresas brasileiras e argentinas, mas os negócios com essas moedas mal se aproximam de 2% das trocas entre os dois países. Nada mais natural: indústrias brasileiras e argentinas precisam de divisas para transações com muitos outros países. Sem o dólar, estariam em situação pior que a dos primitivos produtores, embaraçados na hora de comerciar vacas, trigo e repolhos por meio do escambo.
Mas o governo brasileiro continua empenhado, como se isso fosse muito importante, em promover na América do Sul um comércio baseado em moedas nacionais. O objetivo principal, dizem os defensores da mudança, é facilitar o comércio para as empresas pequenas, livrando-as da complicação e dos custos das operações cambiais. Mas essas operações serão necessárias, de toda forma, se essas empresas precisarem comprar de terceiros países.
Além do mais, o custo e as complicações da burocracia cambial não são os obstáculos mais importantes à participação no comércio internacional. Se isso fosse verdade, um número muito maior de indústrias brasileiras já estaria envolvido na exportação e na importação. Se isso não ocorre, é porque os problemas são muito mais complicados: a logística é deficiente, o custo do capital é absurdo, o investimento é onerado por impostos, falta apoio financeiro a novos empreendimentos e a maior parte dos empresários carece de informações e de meios para formular e implementar estratégias de produção para o comércio exterior.
Resolver essas questões é bem mais difícil do que anunciar medidas cosméticas. Além disso, a diplomacia pouco tem defendido a indústria brasileira, grande, média ou pequena, quando negocia com os sul-americanos. Os acordos são muito mais favoráveis aos parceiros quando se trata, por exemplo, de cronogramas de redução de tarifas. Depois, a tolerância é grande quando se impõem barreiras a produtos brasileiros.
Mas a conversa a respeito de trocas em moedas nacionais tem também a ressonância de um grito de independência em relação ao dólar. Até ao governo chinês o presidente Lula já propôs a mudança da moeda no comércio bilateral. Mas os chineses não misturam comércio com romantismo e não parecem movidos pela nostalgia da vida primitiva - aquela nostalgia de quem tenta repetir o discurso dos anos 50, ressuscitar em 2009 a política de substituição de importações e implantar o atraso no lugar do agronegócio. Pelo menos, há certa coerência nessa pregação do retrocesso.
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