A imprensa Argentina
O ESTADO DE SÃO PAULO - 14/11/09
Desaparecidos são heróis argentinos que no seu país têm estado novamente nas manchetes das últimas semanas por conta da nova Lei de Radiodifusão, que foi dedicada a 118 deles, que eram jornalistas. É paradoxal, pois essa lei vai contra os seus ideais.
As referências aos desaparecidos, jornalistas ou não, são feitas geralmente sem o artigo definido. Muitos são anônimos, não se sabe ao certo quantos foram e como deixaram de existir. Os números mais mencionados estão entre 20 mil e 30 mil, dos quais cerca de 600 desaparecidos antes da ditadura iniciada em março de 1976, no governo populista que a antecedeu. Sacrificaram-se por uma causa nobre, a Argentina Grande desenvolvendo-se de acordo com o seu potencial. Um sonho que existe desde a fundação do país, em 1810.
Todos fizeram parte da juventude que, na virada da década de 1970, ajudou a derrubar o governo militar, no ano de 1973, e foi surpreendida pelo populismo inconsequente que se seguiu. As manifestações de frustração pelo mau desempenho dos eleitos tornaram-se cada vez maiores e a opção foi "apagar" os descontentes mais notórios. Alguns, como Mercedes Sosa, emigraram. Outros simplesmente sumiram sem deixar vestígios.
A partir do início da ditadura de 1976, a repressão aumentou e o número de desaparecidos disparou. Na época as denúncias eram raras, não havia evidências em nenhum lugar, a cumplicidade da máquina governamental assegurou o desconhecimento do que estava acontecendo. Começaram a ganhar notoriedade por conta das "Loucas".
Assim eram chamadas as "Mães da Praça de Maio", que, com lenços brancos na cabeça e sem dizer nada, caminhavam em frente à Casa Rosada com cartazes pedindo informações sobre o paradeiro de seus filhos. Seu silêncio fez barulho e chamou a atenção mundial para as atrocidades que estavam ocorrendo no país, acelerando o fim do governo autoritário.
A volta à democracia, em 1983, foi uma festa cívica memorável que reacendeu a pretensão da Argentina Grande. Foi também o momento de revelação das atrocidades cometidas na ditadura pelos que ousaram sonhar. Entretanto, a fantasia de um país entrando nos eixos aos poucos se evaporou e foi substituída pela frustração da realidade.
O primeiro governo após a ditadura foi atribulado e terminou com a crise da hiperinflação. O sucessor, Carlos Menem, estabilizou a economia e o país teve alguns anos de crescimento expressivo. Entretanto, a inépcia na economia e o populismo clientelista fizeram germinar o desastre de 2001. Depois de um breve interregno, o casal Kirchner está prestes a repetir o padrão bonança-crise.
É um ciclo recorrente, só que cada vez a retomada é num patamar mais baixo. A Argentina era a 10ª economia mundial há um século, quando comemorou o seu centenário. Atualmente é a 78ª e as perspectivas são de que continue caindo no ranking. Há sinais de que uma nova crise está em gestação e a ação do governo é ir de pires na mão ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para postergar a hora da verdade. Mudanças que coloquem o país na direção do desenvolvimento estão fora de questão.
A política econômica é neomercantilista, focada num redistributivismo clientelista. Ilustrando o ponto: o país era chamado o celeiro do mundo por suas exportações de carne e trigo, mas vai ter um déficit na balança desses itens em 2010; e de importador de empresários ambiciosos e jovens talentosos é um grande exportador deles há tempos.
Os méritos da presidente e seu marido incluem o fato de terem sido contemporâneos dos desaparecidos (e de delatores da época) e a capacidade de aumentarem seu patrimônio pessoal de forma considerável. Os números de seu governo, no entanto, são fracos e as perspectivas, piores. A bem da verdade, até estatísticas oficiais estão sendo desacreditadas em razão das denúncias de manipulação.
Um exemplo é a declaração recente do papa Bento XVI: "A pobreza na Argentina é um escândalo." Não se sabe o tamanho: o Indec (o IBGE da Argentina) estima em 15% da população e a UCA, um órgão de pesquisa independente, em 39%. Algo semelhante acontece com as estatísticas de inflação, emprego e crescimento. As diferenças entre as estimativas oficiais e extraoficiais aumenta a cada novo número divulgado e a crise do país fica mais evidente a cada dia que passa.
Se a notícia é ruim, mata-se o mensageiro. Esse é o espírito da Lei de Radiodifusão aprovada em regime de urgência no mês passado. Sintetiza bem o que é a política lá. Busca controlar a imprensa com um sistema de autorizações renováveis a cada dois anos, quer-se desmantelar o grupo Clarín, um crítico esclarecido do governo, com restrições aos meios de difusão que podem possuir, e fazer com que apenas um terço dos órgãos de comunicação sejam de empresas privadas - os outros dois terços seriam do governo e de organizações não governamentais (ONGs).
A imprensa argentina insiste em divulgar a triste realidade. A atitude do governo é de mais pressão: piquetes sindicais para impedir a distribuição dos jornais, fiscalizações da Receita Federal de lá e um discurso da presidente destacando que os pobres não têm acesso à mídia. Se não têm, então para que a coação?
A justificativa da lei e das pressões é a de evitar o monopólio da imprensa e de homenagear os 118 jornalistas desaparecidos. Na prática, é o controle da imprensa e, o que é mais grave, muito mais grave, uma tentativa de transformar o sonho dos desaparecidos num pesadelo. O desejo da Argentina Grande, que completa dois séculos no ano que vem, já superou situações piores. E permanece como esperança.
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