Notícia da madrugada
O GLOBO 29/11/09
Tenho uma comadre muito inteligente, que diz que tudo é trauma de infância. Deve ser verdade e, porque meu pai considerava qualquer pessoa que acordasse depois da cinco um sibarita à beira da perversão e ficava fazendo barulho pela casa toda, até que todo mundo acordasse. Uma vez, escandalizado e alarmado porque eram dez horas da manhã e eu não tinha despertado ainda, ele pegou um regador e molhou minha cara, como se eu fosse um pé de alface (dispenso gracinhas quanto a esta última observação).
— Degenerado! — bradou ele, enquanto eu sacudia a cabeça como um cachorro molhado. — Dissoluto!
Hoje mantenho o único regador da casa a distância do quarto. Não creio que seja tão degenerado assim e muito menos dissoluto, mas não se deve faci-litar com essas coisas. E trauma de infância é trauma de infância, razão por que, quando em Itaparica, costumo estar no mercado antes de o sol nascer, na companhia dos pescadores, dos peixeiros e, embora só ocasionalmente, dos fantasmas de meu pai e meu avô.
Agora distante deles e da ilha a maior parte do tempo, continuo suspeitando de degenerescência insidiosa entrando pelos ossos, sempre que saio da cama depois do horário prescrito pelos hábitos lá de casa. E assim, receio que não tão lépido quanto aos vint’anos, mas ainda dando para o gasto, eis-me caminhando na direção da banca de Salvatore, que outro dia andou espalhando pelo bairro que eu nunca mais apareci, desconfiava ele que por traição à velha freguesia e à não menos velha camaradagem.
Tranquilizei-o quanto a isso, comentamos com algum ceticismo a atual conjuntura, despedimo-nos efusivamente e eu me dirigi a parada seguinte, a da padaria. Sempre achei bonita a imagem do pai de família levando o pão recém-saído do forno para dentro de casa — o sagrado receio do lar, no ver de alguns. Pego o pão, começo a marcha de volta, mas o dia está bonito demais para ter seu começo desperdiçado. Sigo para apreciar o restinho de madrugada em frente ao mar, rever talvez algum velho companheiro de calçadão. Meu jamais esquecido capenguinha, estará ele por lá, cumprindo sua missão vingadora e humilhando alguma outra vítima de sua alta velocidade?
Olho em torno, não o vejo. Não é impossível que se apresente ainda mais façanhudo que antes, pode ser que esteja recalcado por o terem rejeitado como competição desigual, ou algo assim, nos Jogos Paraolímpicos. Mas desta vez não está à vista. Aspiro o ar marinho, contemplo o céu azul e me preparo para finalmente voltar, quando vem de lá quem senão meu amigo Agostinho? No vigoroso verdor de seus sessentinha, sessentinha e pouco, musculatura de 59 com certeza, já está acabando sua corrida diária. Lindo dia, tudo bem, batimentos numa boa, tudo bem, nenhuma novidade, graças a Deus.
— Aliás, minto — disse Agostinho. — Tem novidade, sim. O Lupércio já está recuperado, mas o médico da emergência disse que ele hoje podia estar numa situação igual à de um ovo cozido. De ovo cozido não sai pinto e dele também não ia mais sair. Não ia sair mais nada, aliás, ele estaria na mesmíssima situação que o ovo cozido, mortinho.
— Não entendi nada, Agostinho, eu nem sabia que o Lupércio tinha passado mal.
— Ah, eu pensei que você sabia, todo mundo lá sabia. Ele perdeu os isqueiros todos da casa dele e aí partiu para acender o cigarro no micro-ondas.
— Mas não pode, tem uma trava de segurança, não funciona aberto.
— Você já tentou dissuadir o Lupércio de alguma coisa, quando ele já está com umas duas no juízo? E ele é sergipano, eu aprendi com ele que o sergipano é assim. Quando mete uma coisa na cabeça, não tem santo que tire. O médico explicou que o micro-ondas não produz calor, o que ele faz é agitar as moléculas de água contidas no treco que está lá dentro e aí esse treco assa ou cozinha. Então pelo menos as bochechas do Lutércio iam ficar iguais a um pimentão recheado.
— Mas ele não chegou a enfiar a cara no microondas ligado, não, chegou? Claro que o médico tem razão, as bochechas dele iam ser cozidas vivas, eu fico arrepiado só em pensar.
— Não, ele chegou perto, mas aberto o forno não funciona mesmo. Isso eu sei e o Lupércio também sabe, mas ele aí encasquetou porque diz que detesta qualquer objeto recalcitrante e já esmigalhou um relógio caro porque um ponteiro não parava onde ele queria, e aí partiu para o forno com uma chave de fenda em riste. Sorte o filho dele estar lá para segurar.
— Mas que maluquice, só mesmo o Lupércio. É melhor até avisar ao pessoal daquela mesa dos botafoguenses que ele lidera, eles acham ótimo tudo o que o Lupércio faz.
— É negócio de botafoguense, botafoguense acredita até em lobisomem. Mas esse perigo eu já disse a eles que eles não correm, naquela mesa ninguém tem água no organismo.
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