terça-feira, novembro 17, 2009

ARNALDO JABOR

O apagão me trouxe de volta a infância profunda

O GLOBO - 17/11/09

Tenho saudades da escuridão


Para mim, esse apagão teve um efeito "proustiano". A súbita escuridão me trouxe funda nostalgia da infância. Já contei o episódio a seguir que, aliás, aparece no filme que acabei de rodar: "A Suprema Felicidade".

À meia-noite, quando saí da TV Globo, São Paulo parecia uma imensa sepultura. As luzes que cravejam a cidade nos iludem muito. Do alto, a cidade leva ao lugar-comum inevitável: "miríades de diamantes sobre veludo negro (arghh)".

O apagão nos lembrou de nossa fragilidade: raios, trovões ou falha humana nos revelaram um mundo morto. (Antes, vamos combinar que no apagão tucano Fernando Henrique Cardoso pediu ajuda à sociedade no racionamento, como se faz na democracia. Agora, no apagão "de esquerda", dona Dilma e seu Lobão só se preocuparam "sovieticamente" em esconder causas e preservar a "imagem eleitoral").

Mas, como dizia, o apagão me fez voltar à infância suburbana.

Nós morávamos em casa de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira. Tudo era baldio, cambaio, toda a precariedade do subúrbio era visível a olho nu. Nas famílias vizinhas sempre havia uma ponta de silêncio, olhos sem luz, depois de casamentos esperançosos com buquês arrojados para o futuro que morria aos poucos. Não era a tristeza da pobreza; dava para viver, com o Ford consertado permanentemente por meu pai sujo de graxa, nos domingos com o rádio narrando o futebol, dava para viver com uma empregadinha mal paga, dava, mas a tristeza era quase uma "virtude" que as famílias cultivavam.

Quando tive sarampo, puseram um papel vermelho na lâmpada do teto. O quarto ficou inflamado, rubro como eu. Da rua vinham ruídos remotos: cachorro latindo, o pregão do vassoureiro, gritos de crianças, cigarras. A tarde caía roxa, como a luz do quarto.

As noites eram mais escuras. Volta e meia, faltava energia; tudo se apagava subitamente (com gritos de "aiiii!") e, minutos depois, a luz voltava, com um "ahhhh!" geral de alívio nas ruas.
Era curta minha paisagem noturna de menino: rua, poste amarelo, fogueira no capinzal, a luz verde no rádio de meu pai, onde eu ouvia o "Anjo", a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas poças, com a Lua tremendo na água. De noite, eu era um menino triste. De dia, o Sol era meu, a chuva era minha, minhas eram as nuvens-camelo, as nuvens-girafa, que eu contemplava deitado no chão de terra onde as formigas eram minhas, os caramujos eram meus, sua gosminha madrepérola era minha.

Eu já percebia dramáticas fragilidades na minha família, uma infelicidade latente na sala, gritos atrás da porta do quarto, minha mãe em prantos diante de meu pai enfurecido de ciúmes, pois ela saíra sem meias nylon.

Meu filme parte disso: tristeza em casa e alegria na rua. Mas, quando acordava, a melancolia da noite eu esquecia com as flores vagabundas, os galhos da mangueira, as correrias matinais.
Eu devia ter uns quatro anos.

Um dia, começaram a falar num tal de "eclipse". O que era isso?

O rádio dava o tempo todo que ia acontecer o mais importante fenômeno, o maior eclipse da história da ciência, o eclipse total do Sol, e o Brasil era o lugar ideal para observá-lo.
Explicaram-me e eu não entendi. Chegavam cientistas estrangeiros, aparelhos, comitivas que os locutores celebravam. O Brasil se sentia importante, pois servia ao menos de camarote de eclipse.

Eu fui para o quintal olhar o céu. Mandaram-nos quebrar garrafas e enfumaçar cacos de vidro para ver o sol: "Se bobear, fica cego!", diziam. A molecada olhava o céu. Até que aconteceu. O rádio berrava a hora H como narrando um jogo de futebol. "Olha lá, olha lá! Tá chegando!" Aos poucos, o Sol foi invadido por uma sombra, e tudo ficou negro no meio do quintal. Caíra uma noite súbita, cinzenta, sinistra - por quanto tempo? Os passarinhos pararam de piar, as folhas ficaram pretas, o vento ficou audível, minha casa se apagou ao fundo, com meu pai, minha mãe e as empregadas na varanda, todos olhando para cima.

Eu olhava o sol negro, mas também via a minha família toda ali.

E então eu vi, no escuro do eclipse, a fragilidade daquelas pobres pessoas de subúrbio, eles, eu, batidos por um vento frio, trêmulos de espanto com o céu, nós todos, ali, desamparados.

Baixou-me um sentimento febril e angustiante que hoje interpreto como prenúncio do futuro triste de minha família, a sensação de que a casa, minha mãe, papai de uniforme de capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça rezando, as árvores, as galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, um dia, pois tudo tinha ficado mais longe, como os urubus longe, quase no infinito, na bruma. Minha vidinha de criança solitária foi deslocada pelo eclipse: o Sol não era mais meu, o céu, meus pais, nada era fixo, nada era nosso; eu senti que minha pobre família viajava num tempo escuro, sem controle, um barco na correnteza de noites e dias. O mundo tinha vida própria, o Sol não se importava conosco, emocionados e frágeis.

No Brasil, havia gente muito mais importante que nós, os estrangeiros, os cientistas, e nós ali, de cara para cima, olhando um céu preto.

O rádio falava em "fenômeno". Que fenômeno? Naquele dia, descobri confusamente que "fenômenos" éramos nós...

Volto ao presente e vejo que nos sentimos assim: desamparados, tratados como débeis mentais por um governo que nos esconde as verdades. Além da natureza, somos ignorados pelos sórdidos interesses de uma perigosíssima coalizão de poder: URSS/PMDB.

Retificação. Há tempos, escrevi aqui sobre a "indústria das indenizações" às "vitimas" da ditadura. Continuo contra essa prática que beneficiou muitos espertalhões, mas devo afirmar, a bem da verdade, que não tenho provas de que o sr. Luiz Eduardo Greenhalgh tenha sido comandante dessas mesmas práticas e que tenha enriquecido em razão dessa atividade.

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