O ESTADO DE SÃO PAULO - 30/09/09
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um gênio da política e disso não dá para duvidar. Reconhecer essa verdade, contudo, não esclarecerá se ele foi sincero (e, portanto, de um desconhecimento sesquipedal dos fatos) ou se apenas destilou um gosto peculiar pela ironia quando, na Cúpula América do Sul-África, execrou "retrocessos" institucionais em nosso continente - caso da deposição de Manoel Zelaya. Pois o fez ao lado do tirano líbio Muamar Kadafi, no poder há 40 anos, e do ditador de Zimbábue há 29 anos, Robert Mugabe. Falar em ironia no episódio chega a ser um cruel acinte à memória das vítimas de tantas ditaduras que prosperaram na América Central à sombra das bananeiras em flor. E, justiça seja feita, se se trata de mera ignorância, ela teria de ser imputada também a vários colegas de Lula, entre os quais o americano Barack Obama. Sem falar nos coleguinhas jornalistas que, rejeitando os fatos, classificam de "golpista" o governo de facto de Honduras.
Mel, como é apelidado o latifundiário eleito pela direita que aderiu ao bolivarianismo de Hugo Chávez, foi deposto, é verdade, e não submetido a um processo regular de impeachment, como o foi o primeiro presidente brasileiro eleito pelo voto popular depois da ditadura militar de 1964, Fernando Collor. Isso ocorreu, porém, à luz do ignorado artigo 239 da Constituição de Honduras, que reza peremptoriamente: "O cidadão que desempenhou a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou vice-presidente da República. Quem quebrar este dispositivo ou propuser sua reforma, assim como aqueles que o apoiem direta ou indiretamente, terá de imediato cessado o desempenho de seu respectivo cargo e ficará inabilitado por dez (10) anos para o exercício de qualquer função pública."
Collor nem sonhou tentar o que Zelaya tentou: mudar a Constituição e convocar um plebiscito para permitir sua permanência no cargo, ao arrepio do Congresso e da Justiça. O ex-presidente hondurenho pediu apoio aos militares e, não o tendo obtido, demitiu o comandante das Forças Armadas. A Justiça mandou depô-lo, empossou o presidente do Congresso e não permitiu que ele se vestisse, embarcando-o de pijama para o exterior. O mundo inteiro se revoltou com a desfaçatez dos "golpistas" de Honduras por crassa ignorância das regras constitucionais vigentes num país minúsculo e miserável. Teceu-se, aí, com rapidez, a cortina de fumaça do governo "golpista" e do "martírio" do presidente eleito pelo povo e deposto por militares num novo e típico pronunciamiento latino-americano.
No afã de não repetir Bush, Barack Obama, assessorado por madame Clinton, absolutamente jejuna em quaisquer assuntos ao sul do Rio Grande, condenou a deposição, mas depois foi tratar de problemas mais relevantes. Com o "não temos nada com isso" dos xerifes do mundo, tudo se encaminhava para uma solução simples e cômoda do episódio: as eleições presidenciais poderiam ser realizadas e a paz democrática voltaria a reinar naquele antigo pedaço do império da United Fruit Company.
Aí entrou em ação o coronel golpista Hugo Chávez, que despachou de volta para o centro dos acontecimentos o presidente deposto. Este cruzou a fronteira, mas voltou por cima dos pés para, em seguida, empreender uma entrada espetacular em Tegucigalpa, mercê do engenho estratégico do amigo venezuelano e do peculiar conceito sobre democracia da companheirada brasileira. Dirigente sindical no fim da ditadura militar, quando o general Geisel cunhou sua "democracia relativa", Lulinha Paz e Amor inventou a "democracia de conveniência", adaptação petista da sentença de Artur Bernardes: "Para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei." Ahmadinejad roubou a eleição no Irã? Isso não interessa ao Brasil, que não pode intervir na soberania iraniana. Ahmadinejad nega o holocausto? O fato de sermos amigos não nos força a pensarmos da mesma forma.
Mas o mesmo não vale para Honduras, que não tem projeto bélico nuclear nem bate boca com o vilão ianque. E foi assim que, quando o mundo inteiro esperava um banho de votos para lavar a mauvaise conscience pelo completo desconhecimento internacional das regras constitucionais hondurenhas, o governo brasileiro, para apoiar Chávez, foi à caça do apoio de tiranos africanos para repor Mel Zelaya no poder. Para tanto mandou às favas todas as regras do civilizado convívio internacional. Como nunca antes na história deste planeta, abrigou na "embaixada" brasileira não um fugitivo de um regime ditatorial, mas alguém que decidiu impor a própria vontade de continuar mandando em casa, sem dar bola para as instituições e a opinião pública locais. Esses episódios sempre terminam com um salvo-conduto ao abrigado na embaixada e seu asilo pelo país que o hospedou. Mas este não pode ser o caso: Zelaya não quer fugir de Honduras, mas ficar lá, sob a proteção de Lula, porque Chávez mandou.
O absurdo não para por aí. Lula tem exigido respeito absoluto ao território brasileiro da "embaixada" depois de ter chamado o embaixador de volta e mantido em Tegucigalpa apenas um encarregado de negócios. O governo de facto ainda não ocupou o prédio só para evitar pretextos intervencionistas, pois, como não reconhece a autoridade "golpista", o Brasil não tem mais embaixada em Tegucigalpa.
O ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda tem razão ao se dizer - em entrevista a Lúcia Guimarães no caderno Aliás deste jornal, no domingo - espantado com a intromissão brasileira em Honduras. Estamos é fazendo um banzé brasuca estúpido em terreiro alheio, que, aliás, não tem interesse nem importância nenhuma para nós. Ao mundo, que tenta se esconder do vexame de ignorar as regras da democracia de um país pobre, o Brasil parece bater no peito e proclamar com arrogância: "Sou ignorante, sim, mas quem aí não é?"
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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