Radiografia de um acordo
O GLOBO - 07/09/09
Foi o que se viu recentemente, quando a Câmara dos Deputados aprovou o acordo entre o Brasil e a Santa Sé, que agora irá para o Senado Federal, como último passo para a sanção presidencial. O conteúdo desse instrumento jurídico firmado por dois Estados soberanos é, estou convencido, um bom exemplo de como se pode harmonizar a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.
Naturalmente, nem todos veem dessa forma.
Respeito as opiniões contrárias. Parece-me que seria interessante analisar brevemente alguns pontos deste acordo, mostrando que está claramente inserido na nossa tradição de respeito à diversidade.
Em primeiro lugar, o acordo não cria qualquer tipo de privilégio para a Igreja Católica. A leitura dos 20 artigos do tratado, que recomendo a todos, evidencia que o tom é reconhecer disposições que já estavam presentes de forma esparsa em nosso ordenamento jurídico. Por exemplo, o artigo 15 do tratado dispõe: “Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição brasileira”. Trata-se de um reconhecimento daquilo que a Constituição já estabelecia, ao definir as limitações ao poder de tributar, sublinhando que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto” (art. 150, VI, b). Reconhece-se que a liberdade religiosa é um direito fundamental, não podendo o Estado dificultar o seu exercício através da tributação, como também ocorre, por exemplo, em relação aos partidos políticos ou às entidades sindicais.
O tratamento dado pelo acordo ao ensino religioso sofreu algumas críticas, na suposição de que feriria o caráter laico do Estado brasileiro. Tal visão, no entanto, não reflete a postura da Constituição brasileira, que estabelece que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (art. 210, § 1º). O caráter laico do Estado está assegurado ao se definir que a matrícula é facultativa.
O Brasil e a Santa Sé, no mencionado acordo, também “reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro” (art. 6º). Esse aspecto não enseja novidade a nenhum brasileiro. Basta citar, por exemplo, o Páteo do Colégio, em São Paulo, os Mosteiros de São Bento do Rio de Janeiro e de São Paulo, a Igreja e o Convento de São Francisco em Salvador, o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), onde se encontram diversas esculturas do Aleijadinho e que é reconhecido como Patrimônio Mundial da Unesco. O Estado brasileiro não pode ser indiferente a este patrimônio, já que seria desprezar a nossa própria história.
O acordo não se refere às verdades religiosas, nem tem a menor pretensão de abordar o tema da “verdade”, mas vem consolidar, num único instrumento, o estatuto jurídico da Igreja Católica, à qual pertencem 74% dos brasileiros (segundo dados da FGV). Um Estado laico pede transparência, reconhecimento das lícitas realidades sociais, respeito à liberdade religiosa. Nesse sentido, o acordo é um bom passo, dentro da nossa tradição de convivência pacífica e harmoniosa
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