Lula adverte: não pode ser tratado como uma pessoa comum o ex-presidente que chamou de ladrão
Eleito em 1986 com a maior votação da história da República, o Lula deputado vivia negando qualquer esperança de salvação aos brasileiros que existiam além das fronteiras do PT. Quem não estava filiado ao partido contemplado com o monopólio da ética era inimigo do povo. Quem não votava na seita era comparsa de bandidos disfarçados de pais da pátria. Se o Brasil fosse sério, rugia o Lula oposicionista, todos estariam na cadeia.
Além das reservadas à bancada dos picaretas (”uns 300″, havia recenseado pouco depois do desembarque no Congresso), uma cela hospedaria o presidente José Sarney. “Ademar de Barros e Paulo Maluf
poderiam ser ladrão, mas eles eram trombadinha perto do grande ladrão que é o governante da Nova República, perto dos assaltos que faz”, berrou em setembro de 1987, num improviso em Aracaju, o palanqueiro inclemente com inimigos políticos e regras gramaticais.
O exterminador do plural segue em ação, mas a ofensiva contra tudo que se movesse fora do PT foi interrompida no dia da posse na Presidência da República. O Lula do Planalto descobriu que há vagas para todos no céu companheiro, até para os grandes satãs alvejados pela cólera do Lula do ABC. Não há inimigos tão inimigos que não possam tornar-se amigos, repetia Getúlio Vargas quando instado a explicar alguma aliança implausível. Lula concorda, informa a multidão dos recentíssimos amigos de infância.
O senador José Sarney, que frequenta há quase sete anos o Clube dos Íntimos do Cara, é sempre recebido com agrados e afagos que deixariam perplexo o Lula de Aracaju. No comício de 1987, “o impostor que chegou à Presidência depois de assaltar o poder” foi acusado de inventar canteiros de obras para ampliar a fortuna da família. “A ferrovia Norte-Sul só serve para isso”, exemplificou o Lula do século passado. Seria desmentido pelo Lula do terceiro milênio. “Este projeto é importantíssimo para o desenvolvimento regional”, corrigiu a discurseira que festejou, no começo do ano passado, a retomada das obras da ferrovia.
“Sei que, no início das obras, você foi alvo de inúmeras críticas”, lembrou o presidente Lula com a placidez de quem não conheceu nem de vista o deputado Lula. Sarney retribuiu com o sorriso dos amnésicos profissionais. Houve quem enxergasse na troca de carinhos outra prova de que o Brasil ficou menos primitivo: já não há antagonistas inconciliáveis. Só ficou mais cafajeste. Num país que perdeu a vergonha, não existem afrontas imperdoáveis. Honra é coisa de antigamente.
Os mandamentos não escritos que regulamentam a fraternidade mafiosa hoje prevalecem sobre normas legais e regras éticas, reiteraram as declarações de Lula durante a escala no Cazaquistão. Convidado a comentar a crise do Senado, o pastor que socorre sem nenhum pudor qualquer pecador do rebanho atacou o “denuncismo” da imprensa e inocentou o esquartejado pelo falatório de Aracaju. “Sarney tem história suficiente para que não seja tratado como uma pessoa comum”, decidiu.
Em 1987, ele se dispensou de exibir qualquer prova que o autorizasse a chamar de ladrão o chefe de governo. Neste inverno, faz de conta que não enxerga a montanha de provas que atestam a culpa do presidente do Senado para absolvê-lo liminarmente. Companheiros desde 2003, Lula e Sarney agora viraram comparsas.
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