FOLHA DE SÃO PAULO - 24/05/09
Os excessos ao tratar de doentes talvez se devam ao desordenamento em que a imprensa lida com os avanços |
A BOA FORMULAÇÃO dirigida a jornalistas pela ministra Dilma Rousseff -"Misturar doença e política é de mau gosto"- reflete as alterações radicais nos hábitos da imprensa e dos políticos, em relação às doenças que repõem o poder na dimensão humana.
Recentes no já longo histórico da imprensa brasileira, os excessos talvez se devam ao desordenamento em que o jornalismo vai aqui lidando com seus avanços e novidades. Mas não é menos provável que resultem do rebaixamento dos níveis de educação e civilidade nos costumes do brasileiro em geral. É possível até que as duas coisas sejam uma só, vista por ângulos diferentes.
A relação entre imprensa e doentes com imagem pública não tem, mundo afora, o que se pudesse chamar de regra básica. Em muitos países, a imprensa considera o problema jornalístico resolvido apenas porque deixa de discuti-lo.
Na França, por exemplo, a discrição da imprensa é total quando se trata de figuras do poder, assim como em suas relações sentimentais e sexuais, a menos que o próprio tome a iniciativa da divulgação ou a autorize. Ficou famoso na imprensa francesa o caso do (ex-)presidente François Mitterrand, com sua vida conjugal fora do casamento, da qual tinha uma filha já moça, e um duradouro câncer que afinal o venceu, sem que os eleitores ao longo de sua extensa carreira política tivessem notícia desses fatos.
Nos Estados Unidos, as doenças de figuras do poder são caladas quase como tabu. Do poder nos Estados Unidos, bem entendido, porque os demais estão sujeitos à conveniência ideológica. As normas estaduais variam, e às vezes são tão rígidas que proíbem, como na Califórnia, fotografar a vítima de um mal súbito na rua ou dar notícia do fato. Na Inglaterra, a solução da hipocrisia diplomática prevaleceu também aí: a imprensa "séria" faz a discrição e os tabloides do sensacionalismo, que são a verdadeira grande imprensa inglesa, têm como prato do dia mais frequente algum aspecto pessoal e explorável de alguém célebre, não importa quem. Salvo, e salve, a rainha.
As restrições têm contrapartida: implicam a sonegação de informações. E os casos em que isso se justifica não autorizam a generalização diante de determinado tema, seja qual for. Muito menos se há interesse público.
Na maior parte da sua história, a imprensa brasileira praticou, por consenso tácito, um comedimento eficiente: dava a notícia e acompanhava o desenrolar do caso, porém restrita ao essencial. Na atual fase da imprensa, a liberalização do jornalismo um tanto desregrada e os avanços tecnológicos na produção de jornais aliam-se em estímulo a certos usos discutíveis. Um deles incidiu sobre doenças de figuras do poder, tanto pela obsessão persecutória do personagem e seu tema, quase como redução do jornalismo ao status dos paparazzi, quanto na abundância de pormenores, fotos e gráficos que trazem, com frequência, uma exploração sensacionalista inegável. É o que Dilma Rousseff chama de mau gosto, cujo momento culminante, a meu ver, foi com a doença de Mario Covas. Tancredo Neves foi caso à parte, com sensacionalismo por si mesmo e menos pela doença do que pelas circunstâncias.
Tive duas experiências muito especiais nesse capítulo jornalismo versus doença. O primeiro foi a revelação de que o estado cardíaco do general Figueiredo exigia seu afastamento temporário da Presidência, para submeter-se a uma cirurgia que ele, mais do que recusar, queria bem escondida. Caiu uma avalanche sobre mim, dado nos jornais, rádios e TVs como autor de uma falsidade e, pelo general Rubem Ludwig no "Jornal Nacional" da TV Globo, sob esta acusação: "O jornalista Janio de Freitas é um terrorista".
Não me arrependi de ter escrito a notícia, por convicção e pelo motivo que me levara a escrevê-la. Como sete dias depois, o próprio general Figueiredo confirmou, pedindo licença para ausentar-se do país e, chegado ao hospital de Cleveland, vendo negado até um dia de descanso antes da cirurgia, tal foi a premente gravidade que as primeiras auscultações demonstraram. Foi logo "aberto como um frango", nas suas palavras de recém-salvado.
Mais tarde, dei a notícia de que o câncer linfático do ministro Dilson Funaro, da Fazenda no governo Sarney, voltara a manifestar-se. Funaro confirmou a informação no mesmo dia. Fui muito acusado de querer me vingar da reação do ministro e seus assessores Luiz Belluzo e João Manuel Cardoso de Mello quando noticiei que preparavam uma superdesvalorização do cruzeiro, medida de desesperados atônitos com seu fracasso na luta contra a inflação altíssima. Não me arrependi de haver escrito a notícia da recidiva (nem a da sustada desvalorização), porque Funaro escondia a doença e não se tratava por temor de ser afastado do ministério. Dada a notícia, resolveu tratar-se, ainda que de modo incompleto.
Nos dois casos, creio que o jornalismo, não eu, cumpriu um de seus propósitos de sentido mais humano. Minha preocupação, nas duas ocasiões, foi escrever com toda a sobriedade possível, temeroso do mau gosto ameaçador. O restante era convicção.
PS: Dos dois personagens das notícias tive, mais adiante, referências respeitosas ao trabalho a seu respeito.
Recentes no já longo histórico da imprensa brasileira, os excessos talvez se devam ao desordenamento em que o jornalismo vai aqui lidando com seus avanços e novidades. Mas não é menos provável que resultem do rebaixamento dos níveis de educação e civilidade nos costumes do brasileiro em geral. É possível até que as duas coisas sejam uma só, vista por ângulos diferentes.
A relação entre imprensa e doentes com imagem pública não tem, mundo afora, o que se pudesse chamar de regra básica. Em muitos países, a imprensa considera o problema jornalístico resolvido apenas porque deixa de discuti-lo.
Na França, por exemplo, a discrição da imprensa é total quando se trata de figuras do poder, assim como em suas relações sentimentais e sexuais, a menos que o próprio tome a iniciativa da divulgação ou a autorize. Ficou famoso na imprensa francesa o caso do (ex-)presidente François Mitterrand, com sua vida conjugal fora do casamento, da qual tinha uma filha já moça, e um duradouro câncer que afinal o venceu, sem que os eleitores ao longo de sua extensa carreira política tivessem notícia desses fatos.
Nos Estados Unidos, as doenças de figuras do poder são caladas quase como tabu. Do poder nos Estados Unidos, bem entendido, porque os demais estão sujeitos à conveniência ideológica. As normas estaduais variam, e às vezes são tão rígidas que proíbem, como na Califórnia, fotografar a vítima de um mal súbito na rua ou dar notícia do fato. Na Inglaterra, a solução da hipocrisia diplomática prevaleceu também aí: a imprensa "séria" faz a discrição e os tabloides do sensacionalismo, que são a verdadeira grande imprensa inglesa, têm como prato do dia mais frequente algum aspecto pessoal e explorável de alguém célebre, não importa quem. Salvo, e salve, a rainha.
As restrições têm contrapartida: implicam a sonegação de informações. E os casos em que isso se justifica não autorizam a generalização diante de determinado tema, seja qual for. Muito menos se há interesse público.
Na maior parte da sua história, a imprensa brasileira praticou, por consenso tácito, um comedimento eficiente: dava a notícia e acompanhava o desenrolar do caso, porém restrita ao essencial. Na atual fase da imprensa, a liberalização do jornalismo um tanto desregrada e os avanços tecnológicos na produção de jornais aliam-se em estímulo a certos usos discutíveis. Um deles incidiu sobre doenças de figuras do poder, tanto pela obsessão persecutória do personagem e seu tema, quase como redução do jornalismo ao status dos paparazzi, quanto na abundância de pormenores, fotos e gráficos que trazem, com frequência, uma exploração sensacionalista inegável. É o que Dilma Rousseff chama de mau gosto, cujo momento culminante, a meu ver, foi com a doença de Mario Covas. Tancredo Neves foi caso à parte, com sensacionalismo por si mesmo e menos pela doença do que pelas circunstâncias.
Tive duas experiências muito especiais nesse capítulo jornalismo versus doença. O primeiro foi a revelação de que o estado cardíaco do general Figueiredo exigia seu afastamento temporário da Presidência, para submeter-se a uma cirurgia que ele, mais do que recusar, queria bem escondida. Caiu uma avalanche sobre mim, dado nos jornais, rádios e TVs como autor de uma falsidade e, pelo general Rubem Ludwig no "Jornal Nacional" da TV Globo, sob esta acusação: "O jornalista Janio de Freitas é um terrorista".
Não me arrependi de ter escrito a notícia, por convicção e pelo motivo que me levara a escrevê-la. Como sete dias depois, o próprio general Figueiredo confirmou, pedindo licença para ausentar-se do país e, chegado ao hospital de Cleveland, vendo negado até um dia de descanso antes da cirurgia, tal foi a premente gravidade que as primeiras auscultações demonstraram. Foi logo "aberto como um frango", nas suas palavras de recém-salvado.
Mais tarde, dei a notícia de que o câncer linfático do ministro Dilson Funaro, da Fazenda no governo Sarney, voltara a manifestar-se. Funaro confirmou a informação no mesmo dia. Fui muito acusado de querer me vingar da reação do ministro e seus assessores Luiz Belluzo e João Manuel Cardoso de Mello quando noticiei que preparavam uma superdesvalorização do cruzeiro, medida de desesperados atônitos com seu fracasso na luta contra a inflação altíssima. Não me arrependi de haver escrito a notícia da recidiva (nem a da sustada desvalorização), porque Funaro escondia a doença e não se tratava por temor de ser afastado do ministério. Dada a notícia, resolveu tratar-se, ainda que de modo incompleto.
Nos dois casos, creio que o jornalismo, não eu, cumpriu um de seus propósitos de sentido mais humano. Minha preocupação, nas duas ocasiões, foi escrever com toda a sobriedade possível, temeroso do mau gosto ameaçador. O restante era convicção.
PS: Dos dois personagens das notícias tive, mais adiante, referências respeitosas ao trabalho a seu respeito.
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