terça-feira, maio 05, 2009

ARNALDO JABOR

Kafka e Beckett previram o futuro

O GLOBO - 05/05/09

A ideia de "totalidade" que animou a "razão humana" por milênios acaba de falecer. Acabou de morrer com o socialismo. O homem pensa como um organismo, deseja que a vida seja um corpo funcional. Tudo aspirava a ser "um". Toda razão sempre aspirou à totalidade.

Agora só há fragmentos. Os pensadores ainda fingem gostar do fragmentario, do caótico, do incontrolável. Mentira. Cada fragmento se reerige em totalidade. De onde falamos, quando pedimos o bem? Falamos de uma "harmonia perdida", como se ela fosse ainda possível, ou tivesse algum dia existido.

Só a ficção previu a ilógica do mundo atual. Kafka e Beckett previram o mundo de hoje muito mais claramente que os cientistas políticos. Disseram para Brecht: "Kafka foi o primeiro autor bolchevista". Brecht observou: "E eu sou o último escritor católico".

Por que praticar o bem se ele não é mais possível? O mal virou uma necessidade social. Não dá mais para viver sem praticar o mal. Não dá para estragar a nossa felicidade cada vez que olhamos para crianças famintas. O mal é um mecanismo de defesa. O mal é sempre o "outro". Nunca somos "nós". Hitler nos absolveu a todos. Stalin nos fez santos.

Achamos que a "tarefa democrática" seria um subproduto do capitalismo, como se ele almejasse a diferença, a contemplação das diversidades. É ilusão achar que o capitalismo almeja o heterogêneo. Vejam a obviedade da crise financeira, gerada pelos vícios da voracidade e do egoísmo. Sempre houve um grande "auê" com as injustiças da ditadura. Mas, e o mal dos democratas? Estamos na era do erro inextrincável. Do crime "sem criminosos".

Nem bem nem mal. São as coisas que estão controlando os homens. É o CO2 que controla os governos e não o contrário. As coisas tomaram o poder. Cito Heiner Muller: "A máquina odeia o homem, pois para todo sistema de ordem ele apresenta um fator de perturbação. O homem faz sujeiras, não funciona. Logo, é preciso que ele se vá, o capitalismo deseja a perfeição do sistema estrutural da máquina".

Os fiascos de hoje são defeitos de fabricação. Ou o lixo que o lixo do capitalismo gera. A gripe suína nasce de onde? Deste grande pesadelo poluído e sem controle. No Brasil, muitas catástrofes são "fora do lugar". A evolução técnica convive com o ambiente de miséria e dá no "mal functioning". Explodem pela soma de novas tecnologias com o excesso de atraso: traficantes no morro com supermetralhadoras.

Todos sabíamos que a bolha poderia explodir. Explodiu. Esse malogro traz uma nova era? Terrível ou não, alguma verdade vem aí. Que nova verdade será essa? A prudência, a parcimônia?

Nossa catástrofe maior é a impotência política, Há também o naufrágio da insensibilidade crescente diante do horror. Os fatos estão além da piedade. Há o tédio crescente pela catástrofe, quando a alma vira uma grande pele de rinoceronte.

Mas, há ainda um grande amor brasileiro pelo fracasso, pela falência de propósitos. Quando o fracasso acontece, é um alívio. A fracasso é bom porque nos tira a ansiedade da luta. Já perdemos, para que lutar?

O mal do Brasil não está no assassino serial, está nos pequenos psicopatas que nos roem a vida. Não está na infinda crueza da burguesia nordestina (pior que a do Sul e Sudeste); está muito mais no seu riso, na sua cordialidade. O mal não está na máfia das passagens aéreas no Congresso, nas roubalheiras, mas nos simpáticos jaquetões dos nossos parlamentares, em suas gargalhadas soltas.

Ao denunciar o mal, vivemos dele. Vivemos da denúncia e com ela lucramos. Eu lucro sendo um cara "legal" que denuncia o mal e, assim, escapo da fome, comendo a comida de quem lamento.

Como quase nada acontece no Brasil, a não ser o desatino, o erro da tentativa, o tiro pela culatra, a incompetência arrogante, quando um desastre ou escândalo acontecem, a plateia fica calma. Nossa vida fica mais real e podemos então, aliviados, botar a culpa em alguém.
E dizemos: "Viram? Nada dá certo aqui… a culpa é deles…" Eles quem?

Há uma tradição de que nossa vida é um conto-do-vigário em que caímos. Somos sempre vítimas de alguém. Nunca somos nós mesmos. Ninguém se sente vigarista.

Há os fiascos em preparação, como as reformas do Estado que o Congresso não deixa fazer; há as catástrofes da lentidão dos processos jurídicos; há os eternos denunciadores do fim, fotógrafos, escritores, jornalistas (eu?), gente que denuncia o mal do mundo para o mundo, denúncias que são um pleonasmo maldito para nada.

A vitória é burguesa. "Seja marginal, seja herói." O fracasso é legal, a vitória é careta. A vitória dá culpa; o fracasso é um alívio.

A crise, a catástrofe, o bode preto têm um sabor de "revolução". É como se a explosão "revelasse" algo, uma tempestade de merda purificadora. Além disso, para os carbonários, depois de tudo arrasado, a pureza renasceria do zero.

O Brasil é visto como um grande "bode" sem solução - paraíso da esquerda pessimista, dos militantes imaginários. Quem quiser positividade é traidor. A Academia cultiva o "insolúvel" como uma flor. Quanto mais improvável um objetivo, mais "nobre" continuar tentando. O masoquista se obstina com fé no impossível.

A falência nos enobrece. O culto português à impossibilidade é famoso. Numa sociedade patrimonialista como Portugal do século XVI, onde só o Estado-rei valia, a sociedade era uma massa sem vida. Suas derrotas eram vistas com bons olhos, pois legitimavam a dependência ao rei. Fomos educados para a desgraça. Até hoje somos assim; só nos resta xingar e desejar o mal do país.

Vejam como o Brasil se animou com a crise. Assim como o atraso sempre foi uma escolha consciente no século XIX, o abismo para nós é um desejo secreto. Há a esperança de que no fundo do caos surja uma solução divina.

"Qual a solução para o Brasil ?", perguntamos. Mas, a própria ideia de "solução" é um culto ao fracasso. Não nos ocorre que a vida seja um processo, vicioso ou virtuoso e que só a morte é solução. Para o bem ou para o mal.

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