quarta-feira, abril 22, 2009

MERVAL PEREIRA

Éticas em conflito


O Globo - 22/04/2009
 

O que mais impressiona nesta já longa e penosa discussão sobre os gastos do Congresso é ver que os senhores parlamentares só avançam em suas decisões sob pressão da opinião pública. Na semana passada, diante dos escândalos seguidamente denunciados, as Mesas da Câmara e do Senado se reuniram para definir regras da utilização das passagens, e fizeram apenas oficializar o que já era de uso corrente, como se dando transparência a critérios absurdos eles ganhassem um sentido aceitável pela sociedade.

 

A tentativa de conter o sangramento não deu certo, e dias depois foi preciso que se anunciassem novas medidas, que estão para sair. Fica a sensação de que os parlamentares vão testando a que ponto a opinião pública aceita que seus privilégios alcancem, tentando manter alguns deles a todo custo.

 

É o caso das passagens para terceiras pessoas que não sejam parentes. Um senador com quem conversei, e dos mais sérios, atribuía à “prerrogativa do mandato” o direito de oferecer uma passagem a uma pessoa para vir depor em uma CPI, ou participar de uma audiência pública no Congresso.

 

Ou mesmo mandar um assessor viajar para acompanhar de perto algum fato, ou para participar de uma atividade qualquer, um seminário, por exemplo.

 

Tendo a concordar, mas creio que seria mais correto que o deputado ou senador, em vez de ter uma cota pessoal para usar, fizesse uma requisição formal de passagem à direção da Câmara ou do Senado, justificando toda vez que precisasse de uma para seu trabalho parlamentar.

 

Uma questão central aqui é a tal “cota pessoal” de qualquer coisa, sejam passagens, selos ou telefone.

 

Ela se transformou em um complemento salarial, uma compensação pelo salário inadequado.

 

E as soluções mais criativas vão surgindo, como a tal verba indenizatória de R$ 15 mil que pode ser usada em determinadas circunstâncias sem pagamento de Imposto de Renda.

 

Claro que a utilização indiscriminada e atemporal dos créditos de passagens aéreas também foi uma maneira que algum burocrata imaginativo descobriu para agradar aos senhores parlamentares, e assim, o que seria um instrumento de trabalho passou a ser um privilégio que afasta o parlamentar de seu representado, em vez de aproximá-lo.

 

Deveria haver um teto para cada item desses, acima do qual o parlamentar teria que arcar com a despesa.

 

Mas a “cota pessoal” não deveria se acumular indefinidamente, com a possibilidade de o deputado ou senador convertê-la em dinheiro ou outras benfeitorias quando assim o desejasse.

 

Tenho a impressão de que a cota de cada um deveria se encerrar a cada mês, e o que não fosse usado voltaria para os cofres públicos.

 

Admito, porém, que pode ficar muito custoso fazer esse balanço mensal, e aceitaria que ele fosse feito de seis em seis meses, ou mesmo anualmente, no caso das passagens, mas não no caso do telefone.

 

Mas o espírito deveria ser um só: o uso a trabalho, nunca como um complemento salarial que dá ao parlamentar o direito de usá-lo como bem lhe convier.

 

Não é possível aceitar que o critério seja individual, pois existem deputados, como o ministro Geddel Vieira Lima, que acha que não dá para alguém definir o que é ético e o que não é ético.

 

É verdade que a ética da política se diferencia da ética na vida pessoal, como na famosa distinção de Max Weber, que chamou de “ética da convicção” a da vida pessoal, baseada nos princípios morais que prevalecem em determinado tempo em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que é a dos políticos, que teria um campo mais amplo e flexível de ação.

 

Seria essa “ética da responsabilidade” que permitiria, por exemplo, a um político assumir compromissos para conquistar a maioria parlamentar e poder, assim, atingir o “bem público”.

 

Essa ética particular, em muitas ocasiões, é usada como desculpa para transgressões, e há as em que o preço pago para atingir o “bem público” invalida os eventuais benefícios que poderiam ser alcançados.

 

Mas, quando se fala de dinheiro público com passagens ou telefone celular, não está em jogo a “ética da responsabilidade”, mas a ética do senso comum, a da vida pessoal de qualquer cidadão.

 

Não há como explicar viagens ao exterior, ou passagens dadas a amigos e parentes, dentro da atuação política normal.

 

O grave nessa história toda é que estamos sem Legislativo na prática, porque as duas Casas estão paralisadas desde a eleição das novas presidências, no começo do ano, por denúncias aos borbotões, e, em consequência, os políticos perderam totalmente a credibilidade diante da opinião pública.

 

Os poderes Executivo e Judiciário estão à frente dos acontecimentos políticos, ditando os rumos de acordo com suas agendas próprias, enquanto o Legislativo vai a reboque, incapacitado na sua ação.

 

Paradoxalmente, essa incapacitação surgiu no momento em que parecia que os políticos ganhavam relevância na disputa de poder, especialmente o PMDB que, dominante nas duas Casas, surgia como o grande polo de poder político.

 

Mesmo altamente popular, o presidente Lula parecia refém do PMDB, até que as disputas internas dentro do partido, e, sobretudo, a disputa entre PT e PMDB pela hegemonia na coalizão governista, colocou para a luz do dia todas as mazelas do Congresso.

 

Assim como, anteriormente, a disputa do PTB com o principal núcleo político do governo revelou ao país o mensalão. São consequências do uso desabusado de uma visão distorcida da “ética da responsabilidade”, em detrimento da “ética da convicção”.

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