domingo, julho 14, 2019

Absurdos diários de Bolsonaro - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 14/07


Tanto tempo depois, já era de se esperar que o presidente Jair Bolsonaro soubesse as funções do cargo que exerce. Seis meses é prazo suficiente para qualquer aprendizado, ainda que o natural seria que ele já soubesse, ao se candidatar, as funções de quem chega ao cargo máximo do país. A grotesca e inconstitucional defesa do trabalho infantil num país que vem lutando contra essa chaga há anos, a ideia de nomear o filho para o posto diplomático mais estratégico do país, a declaração mesquinha sobre João Gilberto mostram que ele não entendeu o mais elementar do papel de governar para todos os brasileiros.

Com Bolsonaro não dá para registrar todas as impropriedades de uma vez. São tantas nestes seis meses que ocupariam um jornal inteiro. Os absurdos têm que ser listados em bases diárias, no máximo semanais, para caberem num espaço de uma coluna.

A semana terminou em vitória para ele, pela aprovação da reforma da Previdência, mas ela ocorreu a despeito dele. Durante esse período da tramitação, Bolsonaro levantou sucessivas polêmicas sobre os mais aleatórios assuntos, como se ainda fosse o deputado bizarro que ocupou por 28 anos o mandato sem relatar um único projeto. Enquanto a reforma andava, ele não construiu pontes, não dialogou e atacou quem defendia o projeto. Ele sequer entendeu a reforma que propôs. Prova disso é sua mobilização em favor dos policiais. O projeto consagra a estranha situação de um policial legislativo, que fica lá entre os tapetes verde e azul, ser o brasileiro que se aposenta mais cedo. Jair Bolsonaro continua sendo o que foi: um político paroquial e corporativista, com posições histéricas em questões de direitos humanos e que faz declarações histriônicas e impensadas.

O grande João Gilberto, que mudou a música brasileira, influenciou gerações, projetou o nome do Brasil no exterior, nos deixou um legado de maravilhas sonoras, nem se importaria em saber que sua morte não teve as condolências do presidente. Mas a Presidência se manifesta pelo país, e não pelas preferências pessoais do ocupante do cargo. Isso é tão básico que constrange ter que lembrar.

É sandice até pensar no filho Eduardo Bolsonaro como embaixador nos Estados Unidos, o posto diplomático mais importante do país. O Brasil sempre teve uma diplomacia profissional e dela se orgulhou. Essa decisão é nepotismo, independentemente da firula de que não é cargo em comissão, mas sim cargo político. Quebra o princípio da impessoalidade. A diplomacia é carreira complexa, exige qualificação longa e por isso, como nas Forças Armadas, tem uma gradação hierárquica. Quem a exerce precisa entender as culturas de outros países, captar sutilezas, conhecer leis internacionais e convenções e conduzir negociações delicadas. O embaixador representa o país. Seu trabalho não é apenas se relacionar com o governo ao qual está acreditado, precisa entender e falar com a sociedade, perceber as tendências. Eduardo ligou-se à ultradireita. Escolheu o gueto. Não falaria com uma sociedade com tanta diversidade quanto a americana. O fato de ter fritado hambúrger nos Estados Unidos e ter estado com o presidente Donald Trump não é, claro, qualificação. Além disso, o governo Trump é transitório e pode acabar no ano que vem.

Há projetos que são do país, e não de um governo. Por isso, mesmo quando partidos diferentes se alternam no poder, certos programas seguem em frente. Um deles é o do combate ao trabalho infantil. Isso está na agenda nacional. No último dado do IBGE, o trabalho infantil pesava sobre 190 mil crianças de cinco a 13 anos. Outros 808 mil adolescentes, de 14 a 17 anos, apesar de estarem em idade em que a lei permite o trabalho, estavam sem a carteira e a situação exigidas pela lei. Das crianças de 5 a 13 anos trabalhando, 71,8% eram pretas ou pardas. O que leva um presidente da República, com a responsabilidade que deveria ter, achar que isso pode ser estimulado? A Constituição que ele jurou defender proíbe o trabalho infantil.

Bolsonaro entenderá algum dia o que são os interesses do país? Provavelmente, não. Algumas frases dele ofendem, revoltam ou espantam. Essa, do trabalho infantil, por ser mais absurda que as outras, desanima. Tudo o que se pode dizer lembra a poesia escrita há um século e meio: existe um governo que a bandeira empresta.

Os planos de saúde voltam a atacar - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 14/07

Projeto que deve ser levado ao ministro da Saúde facilita os reajustes por faixa etária e derruba os prazos máximos de espera, entre outras medidas


Está no forno de um consórcio das grandes operadoras de planos de saúde um projeto destinado a mudar as leis que desde 1998 regulamentam esse mercado. Chama-se “Mundo Novo”, tem 89 artigos e está trancado numa sala de um escritório de advocacia de São Paulo. O plano é levá-lo para o escurinho de Brasília, deixando-o com o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Ambos ajudariam o debate se divulgassem o “Mundo Novo” no dia em que chegasse às suas mesas, destampando-lhe a origem.

É a peça dos sonhos das operadoras. O projeto facilita os reajustes por faixa etária, derruba os prazos máximos de espera, desidrata a Agência Nacional de Saúde Suplementar e passa muitas de suas atribuições para um colegiado político, o Conselho de Saúde Suplementar (Consu), composto por ministros e funcionários demissíveis ad nutum.

Irá para o Consu a prerrogativa de decidir os reajustes de planos individuais e familiares, baseando-se em notas técnicas das operadoras (artigos 85 e 46) e não nos critérios da ANS. Cria a girafa do reajuste extraordinário, quando as contas das operadoras estiverem desequilibradas. Uma festa.

A ANS perderá também o poder de definir o rol de procedimentos obrigatórios que as operadoras devem oferecer. Essa atribuição passa para o Consu, que não tem equipe técnica, mas pode ter amigos. Desossada, a ANS perderá também o poder de mediação entre os consumidores e as operadoras. (Tudo isso no artigo 85.)<SW>

Há uma gracinha no artigo 43. Ele determina que os hospitais públicos comuniquem “imediatamente” às operadoras qualquer atendimento prestado a seus clientes para um eventual ressarcimento ao SUS. Exigir isso de uma rede pública que não atende os doentes de seus corredores é uma esperteza para não querer pagar à Viúva o que lhe é devido.

O melhor momento do projeto “Mundo Novo” está no artigo 71. Hoje, se uma pessoa quebrar a perna e não for atendida, a operadora é multada. Feita a mudança, só serão punidas “infrações de natureza coletiva”. Por exemplo, se a empresa tiver deixado de atender cem clientes com pernas quebradas. As operadoras finalmente realizarão seu sonho, criando um teto para a cobrança de multas. Elas nunca poderão passar de R$ 1,5 milhão. Com isso, estimula-se a delinquência.

No papelório do “Mundo Novo” não há um só artigo capaz de beneficiar os consumidores.

Vasily Grossman e o século soviético
Para os adoradores da obra do escritor e repórter russo Vasily Grossman (1905-1964), autor do épico “Vida e destino” e personagem de “Um escritor na guerra”, saiu nos Estados Unidos um bom livro. É “Vasily Grossman and the Soviet Century”, um retrato desse grande romancista e de sua vida enfrentando a censura comunista, as tropas nazistas e as mesquinharias do mundo literário.

Grossman foi da batalha de Stalingrado à tomada de Berlim, passando pelo campo de extermínio de Treblinka. Sua mãe foi morta pelos alemães, sua mulher foi presa pelos soviéticos e os originais de “Vida e destino” foram confiscados pela censura. (Levaram até os carbonos.) Esse grande escritor viu no mundo o que poucos perceberam. Comparou o regime soviético ao nazista e retratou a lógica da desumanidade. Em 1945, quando se festejava a vitória, guardou consigo alguns carimbos que estavam na mesa de Hitler, mas não quis testemunhar a cena da rendição alemã, pois já vira o suficiente. Mais tarde, não quis ir ao julgamento de Nuremberg. (Em qualquer dia do outono de 1941 morreram mais prisioneiros russos do que todos os prisioneiros americanos e ingleses ao longo de toda a guerra.)

Popoff transcreve o relato de Grossman de seu encontro, em 1962, com Mikhail Suslov, o ideólogo-chefe do regime. Eles conversaram por três horas. Suslov, que não havia lido os originais confiscados de “Vida e destino”, disse-lhe que o livro teria o efeito de “uma bomba atômica” para o regime soviético. Grossman morreu sem ver sua obra publicada.

Ele foi acima de tudo um grande repórter e construiu seu romance com as anotações e entrevistas colhidas no dia a dia. É de Grossman a melhor distinção da qualidade dos correspondentes de guerra. Há dois tipos, o que vai para a trincheira e o que fica no quartel do comandante. O primeiro rala com as chefias porque atrasa seus textos e manda histórias inconvenientes. O segundo sempre cumpre os horários e confirma o que dizem as autoridades.

Cabral busca um ninho
O Ministério Público se recusou a negociar um acordo de delação de Sérgio Cabral.

Ele está tentando com a Polícia Federal.

Dallagnol e seu ‘agora ou nunca’
Lidas em bruto, as mensagens obtidas pelo Intercept Brasil podem saturar ou até confundir um curioso. Olhadas no contexto em que aconteceram, chegam a surpreender.

No dia 24 de outubro do ano passado o procurador Deltan Dallagnol escreveu o seguinte para seus colegas:

“Caros, Jaques Wagner evoluiu? É agora ou nunca... Temos alguma chance?. (...) Isso é urgentíssimo. Tipo agora ou nunca kkkkk.”

Dallagnol queria que se fizesse uma operação de busca e apreensão em cima do ex-governador da Bahia, que acabara de se eleger para o Senado.

Uma procuradora argumentou que isso já havia sido feito e “nem sei se vale outra”. Dallagnol respondeu:

“Acho que se tivermos coisa pra denúncia, vale outra busca e apreensão até, por questão simbólica”.

O que haveria de simbólico num teatro da polícia varejando a casa de Jaques Wagner?

Até julho ele havia sido o Plano B do comissariado petista como alternativa de candidato à Presidência. Eleito senador pela Bahia, Jaques Wagner entrou na segunda semana de outubro tentando costurar uma frente de apoio a Fernando Haddad para o segundo turno. A conversa de Dallagnol com os procuradores aconteceu quatro dias antes da votação.

Uma operação de busca e apreensão na casa do petista que tentava moderar as bandeiras vermelhas estava para lá de simbólica. Quando Dallagnol diz que o assunto era “urgentíssimo”, “tipo agora ou nunca”, queria a cena para já.

A turma da Lava-Jato pode dizer que trabalhou com isenção e dentro das normas legais, mas o doutor Dallagnol deve admitir que no dia 24 de outubro estava armando uma cama de gato contra um grão-petista, em busca de algo “simbólico”.

Sinal dos tempos
A embaixada do Brasil em Washington já foi ocupada por gente de fora da carreira.

Rodrigues Alves nomeou Joaquim Nabuco; Getulio nomeou Oswaldo Aranha e o banqueiro Walther Moreira Salles.

Castelo Branco nomeou Juracy Magalhães. Por falar em Castelo, o marechal que demitiu um irmão ficou impassível quando a Marinha negou ao seu filho Paulo a patente de almirante.

Paulo Castelo Branco foi o filho que todo presidente deveria sonhar ter.

O mundo entre otimistas e pessimistas - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

O Estado de S.Paulo - 14/07

Os pessimistas, entre os quais me incluo, veem uma reversão de ciclo e uma recessão próxima



A economia global está desacelerando. Isso é visível na Europa, na China e no mundo emergente, exceto Índia.

A única exceção, dentre as nações relevantes, é a economia americana. Ela não só é a maior do mundo (com um PIB de mais de US$ 20 trilhões) como vem crescendo sem parar há dez anos.

Mais do que nunca, a direção do país será a determinante do que ocorrerá com o mundo, especialmente porque a política agressiva e errática do presidente Trump vem elevando a incerteza e as tensões por conta das inúmeras disputas comerciais e dos atritos em regiões sensíveis, como no Oriente Médio. Entretanto, o conflito mais relevante segue sendo com a China, pois vai muito além do comércio: seu centro está relacionado ao desenvolvimento tecnológico e suas projeções sobre o poder militar.

Essa disputa ainda vai muito longe e a recente decisão, na reunião do G-20 no Japão, de retomar as negociações sobre tarifas tem de ser vista como apenas tática.

Não tenho nenhuma dúvida que os EUA pagarão um pesado preço pelo protecionismo, pelo desarranjo fiscal crescente e pela gigantesca perda de “soft power” resultante da quebra de relações e regras longamente estabelecidas desde o fim da Guerra Mundial. Nem mesmo a maior potência do mundo pode brigar com todos ao mesmo tempo. Quem pode confiar num acordo assinado por alguém que muda de ideias e táticas como troca de ternos?

No curto prazo, a pergunta dos bilhões é o que ocorrerá com a economia americana nos próximos meses. Nesse ponto, há uma clara divisão entre os analistas, que se dividem, como sempre, entre otimistas e pessimistas.

O primeiro grupo argumenta que o crescimento econômico ainda vai continuar robusto por mais algum tempo. Não existe nenhuma pressão inflacionária, o Fed deverá baixar os juros e o consumo continua a crescer. Embora todos saibam que no futuro haverá uma reversão do ciclo, o argumento é que ainda veremos expansão por algum tempo. Os recordes atingidos pelas bolsas de valores apenas refletem essas expectativas.

Politicamente, é o cenário da reeleição de Trump. No cenário alternativo, ele perde.

Os pessimistas, entre os quais me incluo, veem uma reversão do ciclo e uma recessão bem próxima, provavelmente até o primeiro trimestre do próximo ano.

A já mencionada desaceleração do crescimento global e a guerra comercial se colocam como o principal problema. O conflito China/EUA não tem perspectiva de solução, uma vez que os termos exigidos por Trump são draconianos (nada menos que uma rendição total) e não serão aceitos pelo presidente Xi. Nesse caso, teremos uma de duas soluções: ou veremos seguidos adiamentos das tarifas americanas sobre o remanescente das exportações chinesas (como vem ocorrendo desde o início do ano), com a continuidade da incerteza, ou as tarifas serão de fato implantadas e, nesse caso, haverá um impacto inflacionário. Isso porque nesta última rodada de impostos os bens de consumo serão pesadamente atingidos. Além disso, os efeitos do estímulo da redução de tributos ocorrida no ano passado estão no final (sem que os investimentos tenham aumentado de maneira relevante) e os riscos regulatórios estão se elevando. Falo aqui das investigações sobre práticas não competitivas dos quatro gigantes tecnológicos (Google, Amazon, Facebook e Apple) abertas pelos reguladores americanos.

Finalmente, três indicadores que no passado antecederam uma recessão vêm chamando a atenção dos mercados. Primeiro: os spreads de juros de 3 meses e 10 anos estão negativos há 33 pregões consecutivos no momento em que escrevo este artigo. Todas as vezes que eles passaram de 20 dias nessa situação seguiu-se uma recessão. Segundo: o débito corporativo atingiu um recorde de 47% do PIB (sendo que 60% dele é de classificação de risco BBB, apenas um degrau acima de lixo ou junk). Esses ciclos de crédito não prenunciam coisa boa. Terceiro: como apontou David Rosenberg, o modelo do Fed de Nova York “agora mostra 32,9% de risco de recessão, o maior em 12 anos. A história mostra que não tem volta nesse nível”.

O que assusta a mim é que qualquer balanço no barco, como ocorreu no fim do ano passado, pode levar a uma desalavancagem financeira que sempre é desordenada. Nessa circunstância, o já baixo nível da taxa de juros pode limitar a ação do Fed numa tentativa de conter a onda.

Os próximos meses mostrarão quem tem razão.

Economista e sócio da MB Associados.

Afinal, o que é o povo? CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 14/07

Esta é uma categoria social indefinida que, no entanto, encabeça documentos oficiais e tratados internacionais. Mais do que isso, passou a ser a base de um dos maiores valores sociais e políticos da modernidade.


“A democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo”, definiu o presidente americano Abraham Lincoln, na sua declaração mais conhecida. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consagra o povo como sujeito supremo das leis e do exercício do governo: “We the People of the United States (...) establish this Constitution” (“nós o povo dos Estados Unidos (...) estabelecemos esta Constituição”).

Há a vontade do povo, a cultura popular, a voz do povo (que é a voz de Deus, como diz o ditado popular), o carro do povo (Volkswagen). Há até o time do povo ou do povão. Mas a sociologia não reconhece a categoria povo, que não se enquadra nem na teoria de classes nem na teoria das elites dirigentes. Parece considerá-la como espécie de assombração, que não é objeto de nenhuma das chamadas ciências da natureza.

Na sua origem, democracia é o governo do povo. Para os gregos, os mesmos que inventaram a democracia, o governo do povo excluía do processo decisório público as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Até mesmo estrangeiros ilustres moradores de Atenas, como Aristóteles, o tutor de Alexandre Magno, era um desses excluídos, porque nascera na insignificante localidade de Stagirus, cujas ruínas estão na atual Macedônia. Por aí se vê que, já na sua gênese, o conceito de povo era bem mais restrito do que usado hoje.

A democracia dos Estados Unidos, sacramentada no texto “We the people” acima citado, subscrito em nome do povo, também excluía mulheres, escravos e estrangeiros. Só muito recentemente as mulheres puderam votar nos Estados Unidos (em 1920) e no Brasil, em 1932. Por aqui, os analfabetos só foram admitidos como eleitores a partir de 1988.

Ao longo da história, aos atributos tradicionais de um povo, da sua unidade territorial, linguística e cultural passou a ser exigida, também, unidade étnica. Se não for do “mesmo sangue”, não é do “mesmo povo”. Assim, o povo poderia ser, também, independentemente de pátria, o conjunto de eslavos, de curdos, de judeus ou de ciganos.

Mais presentemente, como elemento intrínseco da democracia, passou a ser reconhecido não apenas o acesso de toda população válida às eleições de cargos públicos, mas também o acesso aos direitos civis (direitos humanos). Daí o conceito mais amplo de democracia liberal. Um povo cujos direitos humanos não são reconhecidos não vive numa democracia.

Há quem acredite que o povo sempre vota conscientemente e que os resultados das eleições refletem a legítima vontade popular. Mas a gente sabe como são escolhidos os candidatos a cargos eletivos, sabe como essas candidaturas são financiadas e, mais recentemente, entende que há razões demais para denunciar a natureza viciada dos métodos de convencimento adotados pelos candidatos nas campanhas eleitorais, especialmente pela manipulação das redes sociais.

Uma das críticas recorrentes feitas pelos antidemocratas em todo o mundo é a de que os governos do povo são cada vez mais crescentemente exercidos por burocratas que não guardam nenhuma identificação com o povo. São nomeados sem voto popular ou erigidos em dirigentes de organismos internacionais que formulam tratados, leis, procedimentos, que nada têm a ver com o povo. E isso vale tanto para os burocratas da União Europeia em Bruxelas como para instituições como os bancos centrais ou o Fundo Monetário Internacional. Depois de empossados, nem mesmo os escolhidos pelo voto popular conseguem decidir a direção dos interesses do povo.

A atuação das corporações, dos lobbies, dos grupos de interesses, da corrupção e até do crime organizado com organismos de governo mostram que nem sempre ou, se preferirem, raramente – e não só no Brasil – o poder do povo é, de fato, escolhido pelo povo e exercido para o povo e pelo povo.

Aristides Lobo, ministro do primeiro governo da República do Brasil, ficou célebre por ter dito que “o povo assistiu bestializado à Proclamação da República”. Com isso, definiu que a Proclamação foi obra de ex-escravocratas ressentidos, da maçonaria, de componentes das Forças Armadas e de setores da Igreja, portanto, obra das elites dirigentes e não do brasileiro comum, fosse o que fosse isso. Mas quem seria esse povo que assistia bestializado a tais acontecimentos históricos, além de ex-escravos, analfabetos e gente humilde? E a quantas evoluiu esse mesmo povo 130 anos depois da Proclamação da República?


Só otário acha normal atuação de Deltan para ter lucro. Passeata é quando? - REINALDO AZEVEDO

UOL - 14/07







Começou a chover dinheiro no Brasil, mas apenas em certos setores, não é? (Foto: Freepík)
O Brasil e os brasileiros vão mal. Mas os procuradores Deltan Dallagnol, Roberson Pozzobon e outros — além, é claro, do ex-juiz e atual ministro Sérgio Moro — passam muito bem.

Só Deltan, o Menino Prodígio, previu um aumento de R$ 400 mil na sua conta bancária, no ano passado, com recursos oriundos de palestras. Reportagem da Folha e do site "The Intercept Brasil", publicada no jornal neste domingo, traz a estratégia do rapazola, em diálogos com Pozzobon e com sua própria mulher, para obter lucros com a operação. Nas suas palavras: "Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade".

Era e é preciso combater a corrupção no Brasil?

Todos sabem a resposta.

Esse combate precisa se dar à margem da lei?

A boa resposta também é conhecida.

A Lava Jato provocou um estrago gigantesco na política e na economia. Não em razão do combate ao crime. Mas porque também ela agrediu as leis sob o pretexto de combater ilegalidades.

É muito provável que você que me lê — e é ainda pior com os pobres — tenha sentido na pele os efeitos do lado desastroso da operação. Ou que conheça alguém quem esteja entre as vítimas.

Nove empreiteiras que caíram nas malhas da Lava Jato, por exemplo, haviam demitido 331.705 pessoas até o ano passado. A operação destruiu o setor de construção pesada no Brasil. Junto com os empregos, aniquilou tecnologia nacional. Para punir malfeitores, destruiu as empresas.

Mas e os procuradores? Ah, meus caros! Estão experimentando os melhores anos de suas respectivas vidas. Leiam trecho da reportagem:

O procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, montou um plano de negócios de eventos e palestras para lucrar com a fama e contatos obtidos durante as investigações do caso de corrupção, apontam mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas em conjunto com a Folha.

Em um chat sobre o tema criado no fim de 2018, Deltan e um colega da Lava Jato discutiram a constituição de uma empresa na qual eles não apareceriam formalmente como sócios, para evitar questionamentos legais e críticas.

A justificativa da iniciativa foi apresentada por Deltan em um diálogo com a mulher dele. "Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade", escreveu.

Os procuradores cogitaram ainda uma estratégia para criar um instituto e obter elevados cachês. "Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários", comentou Deltan no grupo com o integrante da força-tarefa.

A realização de parcerias com uma firma organizadora de formaturas e outras duas empresas de eventos também foi debatida nessa conversa.

A lei proíbe que procuradores gerenciem empresas e permite que essas autoridades apenas sejam sócios ou acionistas de companhias.

Os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept indicam que Deltan ocupou os serviços de duas funcionárias da Procuradoria em Curitiba para organizar sua atividade pessoal de palestrante no decorrer da Lava Jato.

As mensagens mostram ainda que o procurador incentivava outras autoridades ligadas ao caso a realizar palestras remuneradas, entre eles o ex-juiz e atual ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.

(…)

RETOMO

Leiam a íntegra da reportagem e os diálogos. Cuidado com enjoo. Especialistas que são em identificar falcatruas ou em atribuí-las a terceiros, Deltan e Roberson pensam estratégias para driblar os limites legais e poder lucrar no mercado de palestras e eventos. Uma das ideias é criar um ente sem fins lucrativos, em nome de suas respectivas mulheres, que assinaria o compromisso com o contratante. Eles, por sua vez, seriam apenas os palestrantes regiamente remunerados. Ou por outra: dois dos mais destacados membros da força-tarefa discutem meios de dar um olé na lei.

PIROTECNIAS

E enquanto a mulher de Deltan e a de Roberson não abrem o seu negócio? Bem, o coordenador da força-tarefa tem uma ideia, fazendo uma referência à empresária Fernanda Cunha, da Star, empresa que organiza palestras e eventos. Escreve ele num grupo que reúne a dupla e suas respectivas mulheres:
"Caros, se formos tocar nós mesmos, não vai funcionar. E se eu passar pra Fernanda da Star organizar isso e combinar que dividiremos os lucros? Se tivermos a empresa em nome de Amanda e Fer, jogamos pra ela organizar tudo e dividimos por 3 o resultado, sendo 1/3 pra Fernanda da Star. Estão de acordo? Se estiverem de acordo passo pra ela a ideia e começamos fazendo na Unicuritiba e talvez 1 em SP inserindo um professor como Edilson mougenot, e enquanto isso as meninas abrem a empresa."

Deltan lembra que um tio seu é dono de uma empresa de eventos. E tem outra ideia:
"Uma vantagem deles é que eles têm contato com inúmeras comissões de formatura. Ou seja. têm canal de divulgação pra universitários. Podem fazer uma 'promoção' pras salas das comissões que são clientes e isso dar volume (…) Se chamarmos ele pra ser sócio com 20%, ele sem dúvida alguma topará. E ele tem toda a estrutura de formatura pra fazer aquelas piras pirotécnicas que Vc [Pozzobon] queria. Som etc."

AUTOAJUDA

No dia 27 de dezembro do ano passado, Deltan evidencia que seus horizontes para ganhar dinheiro enxergam muito além do direito. Ele sonha com algo maior. E faz referência à Conquer, uma empresa especializada em eventos motivacionais. Escreve o buliçoso rapaz (transcrição conforme o original):
"Qual a razão para estudantes de direito (ou profissionais) se interessarem por um curso sobre corrupção? Ou na área penal? Curiosidade não basta, até porque a maior parte dos jovens não têm interesse em Lava Jato. Para o modelo dar certo, teria que incluir coisas que envolvam como lucrar, como crescre na vida, como desenvolver habilidades de que precisa e não são ensinadas na faculdade. Exatamente na linha da Conquer, bem lembrada por Fernanda. Como nosso objetivo não é evidentemente competir com a conquer, podemos nos aliar a ela e à sua ideia… Poderia ser um curso com 4 palestras de 1h: TURBINE SUA VIDA PROFISSIONAL COM FERRAMENTAS INDISPENSÁVEIS 1) Empreendedorismo e governança (inspiração e "como"): seja dono do seu negócio e saiba como governá-lo 2) Negociação: domine essa habilidade ou ela vai dominar Você – Roberson/Delta?? 3) Liderança: influencie e leve seu time ao topo – ?? 4) Ética nos Negócios e Lava Jato: prepare-se para o mundo que te espera lá fora – Delta/Roberson?? Cada palestra teria que ser muito bem desenhada, ter uma pegada de pirotecnia e ainda dependeríamos de uma boa divulgação. Todas as palestras deixariam um gostinho de quero mais (tempo limitado) e direcionariam pra conquer, com retorno de percentual sobre cada aluno que se inscrever no curso da conquer nos 4 meses seguintes."
Sim, Deltan já tinha dado "aula" em curso da Conquer. Escrevi neste blog no dia 13 de março de 2018 um post intitulado "Deltan Dallagnol vira professor de autoajuda. Faz sentido… Ninguém ajuda tanto a si mesmo. Logo, vai começar a curar pessoas ou fundar uma religião". No post, afirmei:

"Ninguém se auto-ajudou tanto nestes tempos como Deltan. Da obscuridade para o estrelato, sem ter produzido uma obra que fique para a posteridade que não seja o desrespeito sistemático às leis e a Constituição. Um dos causadores do terremoto político em curso no Brasil será professor de um troço que proclama ser uma escola dos que "não ficam de mimimi". Aliás, no Brasil, até a Constituição virou "mimimi". O herói de um tempo diz muito sobre esse tempo. É do balocobaco! Mais um pouco, esse rapaz começa a curar pessoas. É esperar para ver. Ou funda a sua própria igreja."

MORO E JANOT

Deltan trata também com Rodrigo Janot, já ex-procurador-geral, e com o então juiz Sérgio Moro a operação como um negócio, como um meio de vida.

Ah… Os membros da Lava Jato nas mãos da Lava Jato seriam alvos de pedido de prisão deferido por Moro. Em vez disso, a gente nota que todos melhoraram de vida.

Só o país piorou. E muito!

Até quando Deltan e seus amigos continuarão a insultar a inteligência alheia em prejuízo do país e em benefício de si mesmos?

Com a palavra, o Conselho Nacional do Ministério Público.

Com a palavra, a Corregedoria do Ministério Público Federal.

Deltan e sua turma são remédios contra a corrupção?

Como perguntou Padre Vieira: "E quem remedeia os remédios?"

Leia a reportagem.

Se você achar tudo normal, seja feliz no papel de otário.

A propósito: quando acontece a próxima passeata em defesa da Lava Jato?

No país bestificado, parece que a era da revolta, 2013-2018, chegou ao fim - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 14/07

O país parece ruidoso nas redes ou no governo, mas não se movimenta política ou socialmente diante de questão controversa como a Previdência

O país quase inteiro assistiu de modo resignado à aprovação dareforma da Previdência. Na prática e no grosso, espera de modo conformado que a economia dê sinal de vida.

Talvez a reação bestificada ou perplexa fosse esperança modesta e calada em algum alívio próximo. Não é o que parecem dizer pesquisas de confiança econômica, de outros sentimentos da vida e de prestígio do governo, que sugerem desilusão e medo.

Talvez tenhamos chegado à fase de aceitação, como se diz do último estágio do luto, como se não houvesse mais a fazer além de atravessar o deserto de modo paciente. Acabou a era da revolta, 2013-2018?

Claro que esta caricatura de psicologia é apenas um modo tentativo de descrever a pasmaceira, obviamente não um diagnóstico do silêncio. O país parece ruidoso nas redes insociáveis ou no governo e nas demais minorias extremistas, mas não se movimenta política ou socialmente mesmo diante de questão controversa como a Previdência.

Antes da tramitação quase pacífica ou funérea da reforma das aposentadorias e pensões, parecia razoável estimar que o plano de mudanças previsto para o ano causasse conflito. Vai?

A reforma tributária pode ser racionalização econômica, como a previdenciária, mas também provoca perdas ou ganhos, talvez ainda mais evidentes. Haverá quem pague mais e menos impostos, empresas e cidadãos. A ideia temerária de acabar com os gastos obrigatórios em saúde e educação, que vem por aí, é caso análogo.

No conflito entre elites econômicas devido a mudanças nos impostos ou mesmo à reforma de carreiras e salários de servidores, talvez se escute algum barulho. O povo em geral e o miúdo em particular assistirá bestificado ao resto da parada das reformas? É uma grande pergunta para o resto deste ano ou de governo, tão difícil de responder quanto é prever os danos do próximo desvario ou remelexo ultradireitista do bolsonarismo.

No mais, haverá questões sérias que não causam comoção popular, como a decisão do futuro da taxa de juros (caso a Selic não vá de 6,5% a 5% até o fim do ano, o Banco Central estará promovendo arrocho grátis e caro, tudo mais constante). Haverá um pacotinho econômico para o curto prazo, uma aguinha para ajudar a travessia do deserto, como a liberação de dinheiro de Pis/Pasep e FGTS. Mata a sede até o ano que vem?

Embora as previsões econômicas dos dois últimos anos, por aí, tenham sido horrendas bolas fora, na média não parece que a economia vá crescer além do ritmo anual de 1% ao ano até o Carnaval de 2020, se houver Carnaval. Teremos então chegado a seis anos de depressão.

Haverá “fadiga de reformas” com efeito prático? A pergunta nem é tão ociosa, porque até economistas-padrão, ditos ortodoxos, começam a especular sobre a possibilidade ou necessidade de algum estímulo para que a economia pegue no tranco (gasto extra do governo, em investimento).

Há, porém, quem preveja que um passeio de reformas possa antecipar a retomada do crescimento. O silêncio nacional seria então de ouro.

Mais seguro dizer que, na falta de alternativa política considerável, respeitável e razoável, resta aos insatisfeitos chorar no cantinho. Pelo andar da carruagem, o país vai ser virado do avesso socioeconômico sob a anestesia da depressão e da catatonia da oposição mais incapaz e desinformada de que se tem notícia.

Enfim, este jornalista vai esperar sentado e de férias o milagre do crescimento. Até agosto.

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

Autoengano 2 - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 14/07

Imposto sobre transações financeiras tem efeitos colaterais indesejáveis


Na semana passada, empresários voltaram a defender a adoção de um imposto sobre transações financeiras.

O nosso sistema tributário certamente tornou-se disfuncional e deve ser reformado. Essa proposta, porém, tem efeitos colaterais indesejáveis.

Nos países desenvolvidos, a principal fonte pagadora de tributos é a geração de renda.

No Brasil, caso a proposta seja aprovada, vai ser diferente. Tributosserão pagos mesmo em transações que não resultem em aumento da renda, como a venda de bens com perda de capital. Um carro comprado por R$ 40 mil e vendido por R$ 30 mil pagará o tributo.

O aumento do número de operações sobre as quais incide a tributação permitirá desonerar a produção, o que sugere que o resultado será o aumento dos lucros. Recomenda-se calma com o andor.

A desoneração da produção será integralmente compensada pela maior tributação dos consumidores, reduzindo a sua renda. O resultado será a menor demanda por bens e serviços, que implica queda dos preços ou das quantidades vendidas e, portanto, das margens de lucro.

Há mais. Como esse tributo é cumulativo, os bens com cadeias longas de produção, como a indústria, ou os setores com menor margem de lucro, como o varejo, passarão a pagar mais tributos do que as demais atividades. O preço de uma geladeira vai aumentar em comparação ao custo de contratar um decorador.

Os problemas não param. As empresas com frequência precisam tomar empréstimos por alguns dias. Para cada R$ 100 emprestados são cobrados poucas dezenas de centavos.

Caso o tributo sobre movimentações financeiras seja de 2,5%, uma empresa que necessite de R$ 100 terá que tomar emprestado R$ 102,56. Para que o banco receba o que emprestou, a empresa terá que pagar mais de R$ 105.

A taxa de juros irá aumentar cerca de cem vezes para um empréstimo de poucos dias. Vamos ter saudade dos juros do cartão de crédito.

Pode-se isentar a cobrança do imposto nas operações de crédito, mas esse é só um exemplo dos muitos casos que deverão ser excepcionados para evitar a degradação do ambiente de negócios.

Os defensores da proposta argumentam que os informais passarão a pagar tributos, reduzindo a carga sobre o setor formal. No entanto, as transações informais pouco passam pelo sistema financeiro, que tem instrumentos para prevenir a lavagem de dinheiro.

O novo tributo vai incentivar a adoção de mecanismos para minimizar a transferência formal de recursos, como o aumento das transações em dinheiro e os contratos de gaveta.

Como dizia Santa Teresa D’Avila: há mais lágrimas derramadas pelas preces atendidas do que pelas não atendidas.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

EDUARDO BIN BOLSONARO - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 14/07
Ao indicar seu filho Eduardo, o 03, para ser embaixador nos EUA, Bolsonaro age como se sentisse dono do Brasil.


Quando a então primeira-dama Marisa Letícia manchou o gramado do Palácio da Alvorada com uma vistosa estrela vermelha do PT, foi um Deus nos acuda e todos nós criticamos o presidente Lula e sua mulher por se comportarem como se fossem donos da residência oficial da Presidência.

Ao indicar publicamente o seu filho Eduardo, o “03”, para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro age como se sentisse dono, não de um imóvel público, mas do próprio Brasil, supondo que pode fazer o que bem entende.

A estrela vermelha era inadequada, mas flores num gramado são apenas um símbolo. Indicar o próprio filho para a principal embaixada do planeta não é só símbolo, mas uma decisão concreta que diz muito sobre o presidente e o governo.

Quais as credenciais do deputado Eduardo Bolsonaro para ser embaixador, e logo em Washington, para onde vão os diplomatas mais experientes, preparados e reluzentes da carreira? Fez intercâmbio, fala inglês e espanhol, passou frio no Maine. Ah! E já fritou muito hambúrguer para os gringos.

Ele não cursou o Instituto Rio Branco e só passou em um concurso público: para escrivão de polícia. Segundo o embaixador Rubens Ricupero, ao Estado, “trata-se de uma medida sem precedentes em nossa tradição diplomática e na história diplomática de países civilizados e democráticos”.

Na verdade, coisa de paisecos e ditaduras, ou melhor, de uma ditadura, a da Arábia Saudita, onde o monarca nomeou seu filho Khalid bin Salman embaixador em Washington.

Bolsonaro, o pai, anunciou a demissão do embaixador Sérgio Amaral em março, às vésperas da ida aos Estados Unidos. Mas esperou quatro meses para lançar o nome do filho para a vaga. Por quê? O “menino” só completou na quarta-feira passada a idade mínima para assumir embaixadas. Fez 35 anos e o pai lançou seu nome para Washington no dia seguinte. Pela imprensa! Aliás, subvertendo uma praxe diplomática internacional, de anúncio só após o “agrément” do governo amigo.

Desde a eleição, o “03” já é mentor e executor da política externa, sob a influência do tal guru Olavo de Carvalho. Vetou nomes para chanceler, definiu a lista de candidatos, fez sabatinas com eles e se fixou em Ernesto Araújo (embaixador júnior, diga-se). Adivinhem quem manda?

Nos Estados Unidos, a estrela não foi o chanceler nem o embaixador. Foi Eduardo, o único na reunião bilateral do pai com Donald Trump. Nunca se viu algo assim. E ele se meteu nas articulações sobre a Venezuela, visitou o presidente da Hungria ao largo da embaixada do Brasil e nomeou o jovem olavista Filipe Martins como assessor internacional da Presidência da República, fechando o tripé da área externa.

Isso confirma o jeito de ser e de governar de Bolsonaro: com a família, os amigos e quem está próximo o suficiente para incutir ideias em seus ouvidos, como se as decisões de Estado e os planos de governo saíssem de papos no café da manhã ou em mesas de bar. “Cadeirinha é muito chato, né?” “Põe o menino lá.”

Daí a mania de armas e a perseguição a conselhos e ONGs, à filosofia e à sociologia, às políticas indígenas e de meio ambiente, aos radares e cadeirinhas, com loas ao trabalho infantil. E as pesquisas e dados científicos, essenciais para a definição de políticas públicas? As universidades? O IBGE? A Fiocruz? O Ibama? Os Denatrans?

O “03” foi o deputado mais votado da história, com 1,8 milhão de votos. Se for para Washington, perde-se um deputado, ganha-se uma dúvida: ele está sendo preparado para ser presidente? Uma dinastia Bolsonaro...

Zero 3 diz ter ‘certo gabarito’ para ser embaixador - JOSIAS DE SOUZA

BLOG UOL - 14/07


Em vídeo divulgado neste sábado (13), o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) defendeu a indicação do seu nome para ocupar o cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. "Eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação", declara no vídeo, esforçando-se para adensar as credenciais que exibira numa entrevista concedida na véspera. "Tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos", ele afirmara na sexta-feira, após encontrar-se com o chanceler Ernesto Araújo.

Ironicamente, a hipótese de conversão de Eduardo em embaixador, mencionada por Jair Bolsonaro na última quinta-feira, não empolgou nem os aliados. Guru da família Bolsonaro, o polemista Olavo de Carvalho também divulgou um vídeo para desaconselhar o gesto. Alegou que o filho Zero Três do presidente deveria dedicar-se à "missão histórica" de conduzir na Câmara uma CPI para investigar o Foro de São Paulo. A deputada estadual Janaína Paschoal aconselhou o correligionário a dizer "não" ao pai, recusando o convite.

Eduardo dá de ombros. Sustenta no vídeo que a possibilidade de virar embaixador "existe não pelo fato de eu ser um mero filho do presidente Jair Bolsonaro." Ele esmiúça o seu currículo: "Sou formado em Direito pela UFRJ, advogado concursado, passei na prova da OAB, escrivão da Polícia Federal, uma pós-graduação em Economia. Falo inglês, português e espanhol. Tenho uma vivência no mundo. Já tive oportunidade de viajar por boa parte dele. E já fiz várias idas aos Estados Unidos. Algumas a lazer, algumas também a trabalho."

A lei que disciplina a escolha de embaixadores leva o número 11.440. É de 29 de dezembro de 2006. Determina que os "chefes de missões diplomáticas permanentes" devem ser escolhidos entre os ministros de primeira e de segunda classe do Itamaraty. Abre uma exceção no parágrafo único do artigo 41. Anota que, excepcionalmente, poderão ser indicados brasileiros de fora da carreira diplomática, desde que sejam maiores de 35 anos e ostentem "reconhecido mérito e relevantes serviços prestados ao país".

Eduardo Bolsonaro absteve-se de recordar em seu vídeo que completou 35 anos há quatro dias. Os críticos não enxergam nele nenhum mérito específico além de ser filho do presidente. Tampouco vislumbram em sua trajetória os relevantes serviços exigidos por lei. Comparado ao processo de seleção do Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas, o concurso para escrivão da Polícia Federal é um asterisco.

A embaixada em Washington costuma ser chefiada por diplomatas que têm de carreira mais tempo do que o Zero Três tem de vida. Por exemplo: Sérgio Amaral, o último embaixador do Brasil em Washington, foi afastado por Jair Bolsonaro em abril. Antes de comandar a embaixada nos Estados Unidos, ele atuara como diplomata em Paris, Bonn, Genebra e na própria capital americana. E servira como embaixador em Londres e Paris,

A despeito de todas as circunstâncias que o rodeiam, o Zero Três não se dá por achado: "Se parar para reparar, se somar isso tudo [Direito na UFRJ, concurso para escrivão, pós em economia, o inglês, o espanhol), viagens internacionais que fiz com o presidente Bolsonaro, como presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, eu tenho um certo gabarito, e é isso que me dá respaldo para essa possibilidade de nomeação".

Eduardo Bolsonaro diz que, depois da eleição do seu pai, fez o que chamou de "rodada" de encontros com investidores americanos. Não cita nenhum. Mas assegura ter detectado em "todos" algo em comum: a "possibilidade de investir seu dinheiro no país". Lembra no vídeo episódio ocorrido na visita do seu pai à Casa Branca, quando seu "trabalho internacional" foi elogiado por Donald Trump.

Jair Bolsonaro também reproduziu no twitter vídeo com o elogio de Trump ao filho. O capital indagou: "De 2003 para cá, você sabe quem foram nossos embaixadores em Washington?" Mais: "Nesse período como foram nossas relações com os Estados Unidos?"

Apologistas de Trump, o presidente e seu filho fingem desconhecer que a atribuição de um embaixador em Washington não se restringe a manter boas relações com a Casa Branca. Ele representa o país junto à sociedade americana. Isso inclui, por exemplo, organismos com os quais Trump vive às turras e personagens políticos e empresariais que o presidente americano abomina. Gente como as lideranças do Partido Democrata, por exemplo.

O filho do presidente foi enviado à Câmara pelos votos de mais de 1,8 milhão de eleitores de São Paulo. "O que pensam os quase dois milhões de eleitores do deputado?", indagou Janaína Paschoal no Twitter. Ela acrescentou: "Quem fez Eduardo Bolsonaro deputado federal foi o povo. Isso precisa ser respeitado. Crescer, muitas vezes, implica dizer não ao pai". Na opinião de Olavo de Carvalho, a ida para Washington levaria à "destruição da carreira" de Eduardo.

Como que decidido a virar embaixador, Eduardo Bolsonaro ignora as observações. Dirigindo-se ao seu eleitorado, ele diz no vídeo: "Aqui, no Congresso, eu sou apenas mais um entre os 513 deputados federais. Lá fora, eu serei o Brasil no exterior. Serei uma pessoa que continuará honrando seu voto, empenhado em outra missão, mas missão em favor do Brasil também."

A certa altura, Eduardo Bolsonaro fala no vídeo como se já estivesse no avião, voando para Washington: "Não estou indo para lá para passear, como outros políticos fizeram, que abandonaram seus mandatos sem dar satisfação e passaram a viver no exterior". Não deu nome aos bois.

Os quase sete minutos de vídeo não retiram de cena a única pergunta que Eduardo Bolsonaro evita fazer a si mesmo: se o presidente da República não fosse seu pai, o posto de embaixador em Washington lhe cairia no colo? A resposta é, naturalmente, negativa.

Crise da renovação - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 14/07


A maior renovação já havida na Câmara Federal nos últimos 20 anos está na base não apenas da votação expressiva de aprovação da reforma da Previdência mas, sobretudo, do choque entre as direções partidárias de esquerda e os novos deputados eleitos sem compromissos com erros do passado.
Nada menos que 8 dos 27 deputados da bancada do PDT, e 11 dos 32 do PSB votaram a favor da reforma, e agora enfrentam possíveis punições, que podem ir até a expulsão. Esse embate, que tem na deputada Tabata Amaral o rosto mais visível, coloca com clareza a disputa entre a os genuínos novos políticos e a velha estrutura partidária, especialmente da esquerda brasileira, que vive momento de isolamento no debate nacional.
A crise partidária provocada pela rejeição aos políticos tradicionais fez com que surgissem diversos movimentos para formar novos candidatos. O “Agora”, que tem entre seus idealizadores o apresentador de televisão Luciano Huck, que chegou a ser cogitado como candidato à presidência da República, o “RenovarBR”, curso de liderança política organizado pelo empresario paulista Eduardo Mufarej, “Acredito” e “Rede de Ação Política pela Sustentabilidade” elegeram 36 deputados.
Outro movimento, o “Unidos contra a Corrupção”, que deu apoio a deputados que assinaram seu manifesto, viu 34 deles serem eleitos. Estes estão na base da aprovação, sem muitos cortes por enquanto, do pacote anticrime enviado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro.
A eleição de 2018 foi responsável por colocar em minoria, pela primeira vez nos últimos anos, os deputados que se reelegeram. Dos 513 deputados que tomaram posse, apenas 48,9% se reelegeram, quando a média histórica era de 54% a 58%. A renovação radical da representação tem um número definitivo: 91 candidatos, nada menos que 18% dos eleitos, nunca haviam disputado uma eleição antes, como Tabata, que tem 25 anos e é cientista politica formada pela universidade Harvard.
Também foi reduzido o número de políticos que já fizeram parte da Câmara em outras ocasiões, como o hoje deputado federal Aécio Neves, que foi eleito senador e agora voltou como deputado federal.
A representatividade na Câmara reflete a polarização contínua entre esquerda e direita. O maior numero de candidatos novos eleitos é do PSL, partido que tinha uma bancada minúscula antes de ser escolhido por Bolsonaro para ser a sigla pela qual concorreria à presidência da República.
Dos estreantes, 29 eleitos estão no partido de Bolsonaro, responsável por praticamente 1/3 da renovação total da Câmara. Nada menos que 27 partidos, dos 35 que têm representação na Câmara, elegeram pelo menos um deputado novato para esta legislatura.
Representando a continuidade que foi interrompida pela verdadeira revolução ocorrida com a eleição de Bolsonaro e a renovação radical da Câmara, PT reelegeu quase 70% de sua bancada, mantendo-se como a maior da Câmara. Mas insuficiente para ter atuação relevante nas discussões das reformas.
Um exemplo de como a esquerda perdeu o rumo da discussão política é o comentário de Ciro Gomes, que tentou ser o candidato da esquerda para opor-se a Bolsonaro na ausência de Lula e foi boicotado pelo próprio, que não queria concorrentes.
Disse ele a respeito dos dissidentes de seu partido, aos quais defende uma punição, pegando Tabata como representativa da rebelião, uma dos 8 deputados que votaram a favor da reforma, contra a orientação partidária: “Ela é nova, tempo tempo de errar e aprender”.
Pelo jeito, quem já teve tempo de errar e aprender, e não o fizeram, foram os partidos de esquerda que, derrotados esmagadoramente na votação da reforma da Previdência, ainda se utilizam da repressão para tratar com seus diferentes. Assim como o PT, anos atrás, expulsou os então deputados federais Bete Mendes e Airton Soares por terem votado em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, e Erundina Silva por ter aceitado fazer parte do ministério de transição de Itamar Franco.

Riscos de nepotismo e obscurantismo no Itamaraty - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 14/07

Intenção do presidente de nomear um dos filhos para embaixada nos EUA contrasta com histórico da instituição


Anuncia-se a abertura ao público da correspondência oficial, reservada, mantida pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro com o presidente João Figueiredo durante a Guerra das Malvinas, em 1982. É bem-vinda a iniciativa da Fundação Getulio Vargas.

Há 37 anos, no dia 2 de abril, a ditadura militar argentina surpreendeu o mundo com a invasão das Ilhas Malvinas. O confronto com o Reino Unido se tornava irreversível, e o Brasil ficou no fio da navalha.

Com a perspectiva de guerra no Atlântico Sul, não podia correr risco de isolamento continental, dando a impressão de apoio ao Reino Unido — até porque não apoiava. Também recusava o alinhamento à Argentina. E a tradicional rivalidade no Cone Sul inspirava preocupação com eventual fortalecimento do regime militar argentino.

Empregados do Itamaraty, o ministro Guerreiro e o embaixador brasileiro em Washington, Azeredo da Silveira, manejaram com destreza o Direito Internacional em defesa dos interesses nacionais. Ao responder a um pedido de ajuda no rascunho do “pensamento do senhor presidente”, Guerreiro traçou uma estratégia. E sugeriu evitar “declarações de autoridades militares”.

Deu-se o improvável. Diante da realidade de uma guerra, o último dos generais-presidentes do ciclo de 1964 subordinou a ação no “teatro” do Atlântico Sul à diplomacia profissional — civis encarregados da política externa do governo militar.

Os resultados compõem o legado da mais significativa obra do período: a consolidação de relações com a Argentina. Foi uma efetiva virada no curso da História, que abriu caminho ao Mercosul e ao acordo de mútua fiscalização nuclear, algo que permanece inédito no planeta.

Essa base de profissionalismo na diplomacia tem garantido independência e realismo na defesa dos interesses do Brasil, a despeito de ocasionais delírios de governantes.

O contraste é evidente com a dinâmica atual do Itamaraty, subordinado a diretrizes obscurantistas emuladas pelo chanceler Ernesto Araújo. Em evento recente, ele resumiu a orientação da política externa: “Recuperar o coração da sociedade liberal e recompor a alma conservadora. É a preservação de um conceito profundo de dignidade humana, [iniciativa] de alguém que se relaciona com Deus.”

Para o atual chanceler, o fenômeno da expansão capitalista conhecido como globalização seria produto da infiltração do comunismo “no coração dos liberais”. Araújo disse isso e, vinte dias depois, subscreveu a maior iniciativa global de livre comércio dos últimos anos, o Acordo Mercosul-UE, conduzido pela Argentina.

A desconstrução de uma histórica arquitetura funcional do Estado ganhou novo capítulo na semana passada: o desejo manifesto do presidente de presentear um dos filhos com o comando da Embaixada em Washington. O nome disso é nepotismo.

Bolsonaro, escolhido por Deus, pisou em Luís XIV - ROLF KUNTZ

O Estado de S. Paulo - 14/07

Se alguém aceitar indicação para o STF com base em religião, será um juiz confiável?

Luís XIV, o Rei Sol, era, afinal, um sujeito modesto. A frase mais famosa a ele atribuída é citada como síntese do espírito absolutista: “O Estado sou eu”. É uma declaração quase franciscana, quando comparada com as palavras do presidente Jair Messias Bolsonaro: “O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes”. Em outras palavras, o cristianismo, pelo menos o do presidente e de seus companheiros, deve sobrepor-se à laicidade do Estado brasileiro e, portanto, permear os Poderes da República. Mais uma vez é indisfarçável o desprezo às instituições.

Esse desprezo ficou evidente em muitas ocasiões, como no dia 30 de junho, quando ele tuitou para cumprimentar os participantes de passeatas a favor da Lava Jato: “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade”.

Instituições incluem, por exemplo, o Código Penal. Se o povo está acima do código, poderá determinar a aplicação da pena de morte a um condenado? Poderá inocentar um culpado e condenar um inocente? E quem dirá se a manifestação terá partido realmente do “povo”? E como se identifica, nos eventos políticos, essa entidade tão difícil de definir? Pelo tamanho da multidão? Pela natureza de seus protestos ou reivindicações? Se for pelo tamanho, havia mais “povo” nas manifestações de 15 de maio, quando se protestou principalmente contra os cortes de verbas para a educação.

Nenhum crítico do governo e de sua política educacional falou em povo acima das instituições. Nem os portadores da bandeira “Lula livre”, também presentes nas passeatas, chegaram a esse ponto. Questionaram a lisura do processo, falaram em falta de provas e reclamaram de uma suposta condenação política, isto é, de uma violação da ordem jurídica.

O nome de Luís XIV era Louis-Dieudonné. “Dado por Deus” é a tradução da segunda parte. A competição continua.

Bolsonaro, segundo proclamou seu ministro Onyx Lorenzoni em reunião com evangélicos, é “o escolhido”. Além disso, Messias é o seu segundo nome. O presidente parece levar esse detalhe muito a sério, mas à sua maneira, naturalmente.

Falando com frequência em nome do cristianismo, ou de seu cristianismo, esse Messias costuma valorizar especialmente um ramo da cultura cristã. Ao participar na quarta-feira de uma cerimônia religiosa na Câmara dos Deputados, ele atribuiu aos evangélicos papel central numa suposta inflexão da pauta moral nos últimos anos. Terá havido alguma contribuição positiva de católicos, judeus, muçulmanos, budistas, espíritas, umbandistas, candomblecistas e adeptos de outros credos menos conhecidos? Ou, quem sabe, também de agnósticos e ateus?

De vez em quando o Messias do Alvorada se mostra mais cuidadoso e passa a falar sobre respeito a todos os credos. Em momentos mais delicados chega a negar qualquer confusão entre crença religiosa e política. Mas a tentação parece irresistível. Manifestou-se de novo na quarta-feira, quando o presidente voltou a mencionar a possível indicação de um evangélico – “terrivelmente evangélico” – para o Supremo Tribunal Federal (STF).

“Não me venha a imprensa dizer que eu quero misturar a Justiça com a religião”, tem repetido o presidente. Mas está misturando, inegavelmente. “Não está na hora de termos um ministro do Supremo Tribunal evangélico?”, havia perguntado Jair Messias Bolsonaro em Goiânia, em maio, numa convenção religiosa. Foi muito aplaudido. Estaria o auditório aprovando a mistura?

A simples menção à crença religiosa do possível indicado comprova a importância atribuída a esse fator. A pergunta a respeito da oportunidade – será hora, enfim? – torna mais evidente a preocupação. Um evangélico teria influência, por exemplo, num debate como o da criminalização da homofobia? Mas se esse é o problema, ou um dos problemas, que tal indicar um conservador de qualquer credo, sem preferência por uma religião?

Tendências diferentes podem favorecer decisões equilibradas numa corte como o STF. Mas decisões sempre envolverão interpretações das normas constitucionais e de seu alcance. Interpretações, no entanto, exigem noções de teoria do Direito, envolvem critérios técnicos e requerem competência e equilíbrio. Tudo isso vai além do moralismo, do bom-mocismo e de qualquer padrão de religiosidade.

Pela Constituição, o indicado para um posto no STF deve destacar-se pelo notório saber e ter reputação ilibada. Na prática, a indicação pode ocasionalmente contornar algum requisito, ou os dois, mas isso jamais ocorre de modo explícito. Formalmente, as instituições são respeitadas. Não há notícia, no entanto, de indicações baseadas explicitamente em critérios extra-constitucionais, como a religião.

Mas esse critério foi mencionado mais de uma vez pelo presidente Messias. Convém, portanto, observar com cuidado qualquer indicação para o STF. A seleção de um evangélico motivará uma preocupação muito justa: quem aceitar a escolha com base em critério religioso será um juiz confiável, mesmo dispondo de qualidades técnicas? Será um profissional dotado de autorrespeito?

Essas questões podem ser irrelevantes para quem defende a imposição de sua religiosidade aos Poderes da República e afirma dever mais lealdade ao “povo” do que às instituições. Mas são extremamente relevantes para quem prefere uma vida ordenada segundo padrões de civilidade próprios de uma democracia liberal.

Uma segunda frase famosa é atribuída a Luís XIV: “Depois de mim, o dilúvio”. De novo, Messias poderá superá-lo, se tiver tanto êxito quanto outros populistas na devastação das instituições. Alguns de seus ídolos da extrema direita estão avançando nessa tarefa na periferia da União Europeia.

JORNALISTA

STF e a laicidade do Estado - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 14/07


Jair Bolsonaro dá mostras de que será a afiliação religiosa o mais importante critério que adotará para indicar um nome para o STF, e não os dispostos na Constituição.


No extenso rol das competências privativas do presidente da República, como dispõe o artigo 84 da Constituição, consta, no inciso XIV, “nomear, após a aprovação pelo Senado Federal, os ministros do Supremo Tribunal Federal” (STF). A indicação para a Corte é quase uma livre escolha do chefe do Poder Executivo. Só não o é porque a própria Lei Maior estabelece, no artigo 101, os pré-requisitos para a ascensão ao topo do Poder Judiciário: os indicados devem ser cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notório saber jurídico e reputação ilibada.

No curso de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro terá oportunidade de indicar dois nomes para o STF. O primeiro, para ocupar a vaga a ser aberta pela aposentadoria do ministro Celso de Mello no ano que vem. O segundo, para substituir o ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 2021. Pela primeira vez em público, durante um culto religioso celebrado pela Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro afirmou que para uma dessas vagas pretende indicar um nome “terrivelmente evangélico”. Não se sabe exatamente o que o presidente vê de bom nessa estranha qualificação, mas isso não vem ao caso.

“Reafirmo o meu compromisso aqui. O Estado é laico, mas nós somos cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes. Por isso o meu compromisso. Poderei indicar dois nomes para o STF. Um deles será terrivelmente evangélico”, afirmou o presidente aos deputados.

Embora a Constituição defina os pré-requisitos para que um cidadão tome assento nos Tribunais Superiores, não há o que impeça que o presidente da República, em seu íntimo, leve em consideração outros fatores como melhor lhe aprouver, entre os quais a fé religiosa do possível indicado – ou mesmo a ausência desta –, desde que a Lei Maior seja respeitada. O problema é que o presidente Jair Bolsonaro, em sua fala, dá mostras de que será a afiliação religiosa o primeiro e mais importante critério que adotará para indicar um nome para o STF, e não os que vão dispostos na Constituição que ele jurou respeitar.

Prova disso é a construção “o Estado é laico, mas somos cristãos”. O uso da conjunção adversativa dá a entender que o Estado pode até ser laico, mas como a fé cristã pretende ser uma das marcas do atual governo, a laicidade do Estado pode, eventualmente, estar submetida aos valores da fé professada pelo chefe do Executivo. Não pode. A laicidade deve, sim, prevalecer.

Em maio, na Convenção Nacional das Assembleias de Deus, em Goiânia, o presidente já havia sinalizado de que pretendia indicar um evangélico para o STF ao fazer duras críticas a recentes julgamentos da Corte. “Não me venha a imprensa dizer que eu quero misturar Justiça com religião. Todos nós temos uma fé ou não temos. Respeitamos e tem de respeitar. Mas não está na hora de termos um ministro evangélico no STF?”, perguntou o presidente.

Estar ou não estar na hora de haver um ministro evangélico no STF é uma definição exclusiva do presidente da República. Os ministros do STF podem professar a fé que desejarem ou não ter fé alguma. Como qualquer cidadão, juízes podem buscar nas múltiplas denominações religiosas o conforto espiritual para lidar com as questões da existência. Assim como outros podem preferir encontrá-lo nas artes e na filosofia. O que se espera de um ministro do STF, alguém em cujas mãos está o destino de cidadãos, de empresas, do País, é que, antes de tudo, seja um juiz “terrivelmente” aferrado à Constituição, seja qual for o seu credo.

Está clara a convicção do presidente Jair Bolsonaro de que a religião, de fato, será o fator preponderante para a escolha do próximo indicado para a Corte Suprema. Ao Senado caberá aferir, por meio da sabatina, se o escolhido detém os pré-requisitos determinados pela Carta Magna. Caberá ao ministro escolhido, uma vez investido no cargo, pautar seus julgamentos pelas leis e pela Constituição, deixando-se guiar pela fé apenas na esfera privada.

Deltan montou plano para lucrar com fama da Lava Jato, apontam mensagens

FOLHA DE SP - 14/07
Procurador discutiu criar empresa sem ser sócio e estratégia para arrecadar com palestras; ele diz promover cidadania
Flavio Ferreira, da FolhaAmanda Audi e Leandro Demori, de The Intercept Brasil
O procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, montou um plano de negócios de eventos e palestras para lucrar com a fama e contatos obtidos durante as investigações do caso de corrupção, apontam mensagens obtidas pelo The Intercept Brasil e analisadas em conjunto com a Folha.
Em um chat sobre o tema criado no fim de 2018, Deltan e um colega da Lava Jato discutiram a constituição de uma empresa na qual eles não apareceriam formalmente como sócios, para evitar questionamentos legais e críticas.
A justificativa da iniciativa foi apresentada por Deltan em um diálogo com a mulher dele. "Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade", escreveu. 
O procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em palestra no 6º Congresso Internacional de Compliance - Jorge Araújo - 9.mai.2018/Folhapress
Os procuradores cogitaram ainda uma estratégia para criar um instituto e obter elevados cachês. "Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários", comentou Deltan no grupo com o integrante da força-tarefa.
A realização de parcerias com uma firma organizadora de formaturas e outras duas empresas de eventos também foi debatida nessa conversa.
A lei proíbe que procuradores gerenciem empresas e permite que essas autoridades apenas sejam sócios ou acionistas de companhias.
Os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept indicam que Deltan ocupou os serviços de duas funcionárias da Procuradoria em Curitiba para organizar sua atividade pessoal de palestrante no decorrer da Lava Jato.
As mensagens mostram ainda que o procurador incentivava outras autoridades ligadas ao caso a realizar palestras remuneradas, entre eles o ex-juiz e atual ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.
Os chats pelo aplicativo Telegram que envolvem a força-tarefa da Lava Jato foram enviados por uma fonte anônima ao Intercept, que divulgou a primeira reportagem em 9 de junho. Na última terça (9), o site publicou o primeiro áudio do material, no qual Deltan comemora uma proibição de entrevista do ex-presidente Lula (PT) à Folha.
Sempre que questionado sobre a sua atividade como palestrante, Deltan enfatiza que sua atuação neste campo tem como objetivo promover a cidadania e que grande parte dos recursos é destinada a entidades filantrópicas ou de combate à corrupção. 
Pouco antes do primeiro aniversário da Lava Jato, em fevereiro de 2015, a dedicação de Deltan a cursos e viagens já gerava descontentamento entre os colegas da Procuradoria em Curitiba. Em uma conversa, o procurador buscou justificar suas atividades, dizendo que ela compensava um prejuízo financeiro decorrente da Lava Jato.
"Essas viagens são o que compensa a perda financeira do caso, pq fora eu fazia itinerancias [trabalho extraordinário em que, ao assumir tarefas de outro procurador, é possível engordar o contracheque] e agora faria substituições", disse o procurador.
"Enfim, acho bem justo e se reclamar quero discutir isso porque acho errado reclamar disso. Acho que o crescimento é via de mão dupla. Não estamos em 100 metros livres. Esse caso já virou maratona. Devemos ter bom senso e respeitar o bom senso alheio", completou Deltan.
A intensa atividade de Deltan como palestrante chamou a atenção da imprensa e levou os deputados federais Paulo Pimenta (PT-RS) e Wadih Damous (PT-RJ) a pedirem abertura de um procedimento disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público.
O requerimento, porém, foi arquivado, pois o órgão entendeu à época que as palestras se enquadravam como atividade docente, o que é permitido por lei, e ressaltou que grande parte dos recursos era destinada a instituições filantrópicas.
A ideia de criar uma empresa de eventos para aproveitar a repercussão da Lava Jato foi manifestada por Deltan em dezembro de 2018 em um diálogo com a mulher dele.
No mesmo mês, o procurador e o colega dele na força-tarefa da Lava Jato Roberson Pozzobon criaram um grupo de mensagens específico para discutir o tema, com a participação das esposas deles.
"Antes de darmos passos para abrir empresa, teríamos que ter um plano de negócios e ter claras as expectativas em relação a cada um. Para ter plano de negócios, seria bom ver os últimos eventos e preço", afirmou Deltan no chat.
Pozzobon respondeu: "Temos que ver se o evento que vale mais a pena é: i) Mais gente, mais barato ii) Menos gente, mais caro. E um formato não exclui o outro".
Após discussões sobre formatos do negócio, em 14 de fevereiro de 2019 Deltan propôs que a empresa fosse aberta em nome das mulheres deles, e que a organização dos eventos ficasse a cargo de Fernanda Cunha, dona da firma Star Palestras e Eventos.
Deltan detalhou então como seria a organização formal da empresa. "Só vamos ter que separar as tratativas de coordenação pedagógica do curso que podem ser minhas e do Robito [Pozzobon] e as tratativas gerenciais que precisam ser de Vcs duas, por questão legal."
Em seguida, o procurador alertou para a possibilidade de a estratégia levantar suspeitas. "É bem possível que um dia ela [Fernanda Cunha, da Star Palestras] seja ouvida sobre isso pra nos pegarem por gerenciarmos empresa", disse.
Pozzobon então comentou, em tom jocoso: "Se chegarem nesse grau de verificação é pq o negócio ficou lucrativo mesmo rsrsrs. Que veeeenham".
O procurador Roberson Pozzobon, da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba - Theo Marques - 12.mar.2019/UOL
No dia seguinte, Deltan sugeriu também estabelecer uma parceria com uma empresa de eventos e formaturas de um tio dele chamada Polyndia.
"Eles [Polyndia] podem oferecer comissão pra aluno da comissão de formatura pelo número de vendas de ingressos que ele fizer. Isso alavancaria total o negócio. E nós faríamos contatos com os palestrantes pra convidar. Eles cuidariam de preparação e promoção, nós do conteúdo pedagógico e dividiríamos os lucros", afirmou Deltan.
No último dia 3 de março, Deltan postou no diálogo detalhes sobre um evento organizado por uma entidade que se apresentava como um instituto. Ele comentou que esse formato jurídico também poderia servir para evitar questionamentos jurídicos e a repercussão negativa quanto à atividade deles.
"Deu o nome de instituto, que dá uma ideia de conhecimento... não me surpreenderia se não tiver fins lucrativos e pagar seu administrador via valor da palestra. Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários", escreveu.
Folha pesquisou registros na Junta Comercial do Paraná e em cartórios de Curitiba e as buscas indicaram que, por enquanto, não houve a constituição de empresa de palestras em nome das mulheres dos procuradores ou de um instituto em nome deles.
As mensagens no Telegram indicam a intenção dos procuradores de tocar o projeto mesmo sem que a empresa de eventos e palestras estivesse formalizada. "Podemos tentar alguma coisa agora em maio tvz. Ou fim de abril. Nem que o primeiro evento a empresa não esteja 100% fechada", afirmou Pozzobon.
Em dezenas de conversas analisadas pela Folha e pelo Intercept, Deltan mostrou grande interesse quanto ao valor de cada palestra.
Cerca de três meses antes de iniciar o grupo para discutir a abertura da empresa, Deltan informou a esposa sobre a lucratividade das palestras apurada até setembro de 2018. 
"As palestras e aulas já tabeladas neste ano estão dando líquido 232k [R$ 232 mil]. Ótimo... 23 aulas/palestras. Dá uma média de 10k [R$ 10 mil] limpo."
No mês seguinte, o procurador manifestou a expectativa para o fechamento de 2018.
"Se tudo der certo nas palestras, vai entrar ainda uns 100k [R$ 100 mil] limpos até o fim do ano. Total líquido das palestras e livros daria uns 400k [R$ 400 mil]. Total de 40 aulas/palestras. Média de 10k limpo", disse o procurador.
Caso tenha atingido a meta de faturamento líquido de R$ 400 mil em 2018, essa remuneração pode ter superado a soma dos salários de Deltan como procurador da República naquele ano.
Dados do Portal da Transparência do Ministério Público Federal mostram que ele recebeu cerca de R$ 300 mil em rendimentos líquidos em 2018, sem considerar valores de indenizações.
As mensagens apontam que Deltan usou os serviços de duas funcionárias da secretaria da Procuradoria, tendo realizado pedidos de registro de recibos e documentos relativos aos eventos, além de solicitações para que elas organizassem os convites que ele recebia.
As palestras remuneradas também são tema de muitas conversas de Deltan com autoridades. Um dos episódios em que ele encorajou interlocutores a atuar nessa área ocorreu em abril de 2017.
Na ocasião, o procurador antecipou um convite ao então juiz responsável pela Lava Jato, Sergio Moro, para participar de um evento em São Paulo e contou como estava cobrando pela atividade.
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"Caro, o Edilson Mougenot [fundador da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais] vai te convidar nesta semana pra um curso interessante em agosto. Eles pagam para o palestrante 3 mil", escreveu Deltan a Moro.
"Pedi 5 mil reais para dar aulas lá ou palestra, porque assim compenso um pouco o tempo que a família perde (esses valores menores recebo pra mim... é diferente das palestras pra grandes eventos que pagam cachê alto, caso em que estava doando e agora estou reservando contratualmente para custos decorrentes da Lava Jato ou destinação a entidades anticorrupção - explico melhor depois)...", emendou.
O procurador ainda completou: "Achei bom te deixar saber para caso queira pedir algo mais, se achar que é o caso (Vc poderia pedir bem mais se quisesse, evidentemente, e aposto que pagam)".
A princípio, Moro disse que já estava com a agenda cheia, mas posteriormente aceitou o convite e participou com Deltan em 26 de agosto de 2017 do 1º Congresso Brasileiro da Escola de Altos Estudos Criminais em São Paulo.
Em junho do ano passado, o chefe da Lava Jato em Curitiba convidou o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot para participar de um evento em São Paulo.
Depois de abordar o curso, ele comentou: "Tava aqui gerenciando msgs e vi que fui direto ao ponto kkkk Tudo bem com Vc? Espero que esteja aproveitando bastante, tomando muita água de coco e dormindo o sono dos justos rs Agora, vou te dizer, Vc faz uma faaaaaaaltaaaaa".
"Oi amigo kkkkkk", respondeu Janot. "Considero sim mas teremos que falar sobre cache. Grato pela lembra".
Deltan perguntou se o cachê oficial do ex-chefe era de R$ 30 mil e sinalizou que faculdades normalmente "não pagam esse valor"¦ mas se pedir uns 15k [R$ 15 mil], acho que pagam".
Em julho de 2016, Deltan trocou mensagens com a procuradora da República em São Paulo Thaméa Danelon sobre uma operação que ela estava coordenando contra o superfaturamento na aquisição de equipamentos para implante em doentes com mal de Parkinson.
Após comentar sobre a melhor forma de divulgar a operação, Deltan sugeriu que a procuradora aproveitasse o tema de fraude na área da saúde para montar uma palestra para a empresa de planos de saúde Unimed, uma das que mais contratou o procurador nos últimos anos.
"Vc podia até fazer palestra sobre esse caso mais tarde em unimeds. Eles fazem palestras remuneradas até", disse Deltan no diálogo.
A procuradora informou por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Federal em São Paulo que jamais realizou palestra para a Unimed.
A exemplo de seus colegas da força-tarefa de Curitiba, Thaméa disse que "não reconhece o conteúdo das supostas mensagens que não foram submetidas a qualquer verificação de integridade" e por isso não iria comentá-las.
Na conversa sobre a empresa de palestras e eventos, os procuradores da Lava Jato discutiram também maneiras de sair da linha tradicional do ensino jurídico para conseguir clientes jovens e interessados em cursos motivacionais.
No dia 27 de dezembro de 2018, Deltan postou no diálogo: "Curiosidade não basta, até porque a maior parte dos jovens não têm interesse em Lava Jato. Para o modelo dar certo, teria que incluir coisas que envolvam como lucrar, como crescer na vida, como desenvolver habilidades de que precisa e não são ensinadas na faculdade. Exatamente na linha da Conquer".
A firma Conquer mencionada pelo procurador organiza palestras na linha motivacional e se apresenta como uma escola "aceleradora de pessoas". À época, Deltan já havia ministrado palestras em eventos da Conquer.
O procurador então sugeriu o desenvolvimento de um evento com o título "Turbine Sua Vida Profissional com Ferramentas Indispensáveis".
Os temas do curso, segundo Deltan, seriam "Empreendedorismo e governança: seja dono do seu negócio e saiba como governá-lo", "Negociação: domine essa habilidade ou ela vai dominar Você", "Liderança: influencie e leve seu time ao topo", "Ética nos Negócios e Lava Jato: prepare-se para o mundo que te espera lá fora".
Deltan propôs ainda que o curso tivesse "uma pegada de pirotecnia" e servisse como ponte para faturar com outros eventos da Conquer. 
"Todas as palestras deixariam um gostinho de quero mais (tempo limitado) e direcionariam pra Conquer, com retorno de percentual sobre cada aluno que se inscrever no curso da Conquer nos 4 meses seguintes", planejou o procurador.
Um mês depois, Pozzobon voltou ao assunto propondo um curso jurídico mais tradicional sobre ética e combate à corrupção, com o objetivo de atrair clientes de alta renda. 
"Curso de sexta a noite e sábado de manhã. E poderíamos cobrar bem. Tipo uns 3 ou 5 mil. Público alvo: empresários, advs e altos executivos."

DELTAN AFIRMA QUE FAZ PALESTRAS PARA PROMOVER A CIDADANIA 

O coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, afirma que realiza palestras para promover a cidadania e o combate à corrupção e que esse trabalho ocorre de maneira compatível com a atuação no Ministério Público Federal.
Deltan e o procurador Roberson Pozzobon informam que não abriram empresa ou instituto de palestras em nome deles ou de suas esposas e que não atuam como administradores de empresas.
Em nota enviada pela assessoria de imprensa da Procuradoria no Paraná, os integrantes da força-tarefa da Lava Jato declaram que "não reconhecem as mensagens que têm sido atribuídas a eles" e que "esse material é oriundo de crime cibernético e não pôde ter seu contexto e veracidade comprovado".
Quanto ao tema das palestras, a nota afirma que "é lícito a qualquer procurador, como já decidido pelas corregedorias do Ministério Público Federal e do Conselho Nacional do Ministério Público, aceitar convites para ministrar cursos e palestras gratuitos ou remunerados".
"Palestras remuneradas são prática comum no meio jurídico por parte de autoridades públicas e em outras profissões", completa a nota.
Segundo a manifestação do Ministério Público Federal no Paraná, Deltan e Pozzobon "não têm empresa ou instituto de palestras em nome próprio nem de seus familiares. Tampouco eles atuam como administradores de empresas".
Quanto à atividade específica de Deltan, a nota afirma que ele "realiza palestras para promover a cidadania e o combate à corrupção de modo sempre compatível com o trabalho. A maior parte delas é gratuita e, quando são remuneradas, são declaradas em imposto de renda e ele doa parte dos valores para fins beneficentes".
Sobre o fato de as mensagens do aplicativo Telegram mostrarem a utilização de duas funcionárias da Procuradoria em tarefas de organização das atividades de palestrante de Deltan, a nota relata que "a secretaria da força-tarefa cuida da agenda do procurador quando há eventos gratuitos relacionados a pautas de interesse institucional".
"Convites para palestras com remuneração ao procurador, quando recebidos pela secretaria, são redirecionados para pessoa de fora dos quadros do Ministério Público, a qual se encarrega de fazer a interlocução com os organizadores do evento", segundo a nota enviada pela força-tarefa.
Esta é a quarta de uma série de reportagens que a Folha planeja produzir com base nas mensagens trocadas pelos procuradores da Operação Lava Jato nos últimos anos e obtidas pelo site The Intercept Brasil.
O site permitiu que a Folha tivesse acesso ao acervo, que diz ter recebido de uma fonte anônima há semanas.
Repórteres do jornal e do site trabalharam lado a lado, pesquisando as mensagens.
Ao examinar o material, a reportagem da Folha não detectou indícios de que ele possa ter sido adulterado.
A PF abriu inquéritos para apurar suspeitas de ataques de hackers a procuradores e ao ministro Sergio Moro (Justiça).
PARA ENTENDER AS CONVERSAS
O que são
Desde 9.jun, o site The Intercept Brasil vem divulgando um pacote de conversas envolvendo procuradores da República em Curitiba e Sergio Moro, na época juiz responsável pelos processos da Lava Jato
Período 
Os diálogos aconteceram no aplicativo Telegram entre 2014 e 2019
Fonte 
O site informou que obteve o material de uma fonte anônima, que procurou a reportagem há cerca de um mês. O vazamento, segundo o Intercept, não está ligado ao ataque ao celular de Moro, em 4.jun
Análise 
Folha teve acesso ao material e não detectou nenhum indício de que ele possa ter sido adulterado. Os repórteres, por exemplo, encontraram diversas mensagens que eles próprios trocaram com a força-tarefa nos últimos anos
Conteúdo 
As mensagens indicam troca de colaboração entre Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Segundo a lei, o juiz não pode auxiliar ou aconselhar nenhuma das partes do processo
Consequências 
O vazamento pode levar à anulação de condenações proferidas por Moro, caso haja entendimento que ele era suspeito (comprometido com uma das partes). Isso inclui o julgamento do ex-presidente Lula