domingo, fevereiro 18, 2018

Sobre o auxílio-moradia a juízes: legal igual a moral? - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 18/02

Benefício é pago independentemente de o magistrado ter imóvel próprio


Há algum tempo a categoria de juízes vem sendo exposta em razão do auxílio-moradia. O benefício é pago independentemente de o magistrado ter imóvel próprio na cidade em que trabalha.

Os juízes argumentam que a concessão do benefício é legal e, portanto, não há problema moral em requerê-lo. O juiz Sergio Moro argumentou que o benefício compensa os salários congelados há três anos. Faltou lembrar que os impostos também não crescem há três anos.

Apesar da legalidade, a percepção é que o benefício é imoral.

O colunista Eugênio Bucci, na edição de quinta (15) do jornal "O Estado de S. Paulo", afirmou que o governo estereotipava os servidores públicos como privilegiados. Os servidores públicos somente "acreditaram na promessa do Estado de que, se topassem trabalhar recebendo proventos limitados, (...) teriam, no final da vida, uma aposentadoria digna".

Recente estudo do Banco Mundial mostrou que o Estado brasileiro remunera trabalhadores com as mesmas características de qualificação com salários 70% maiores do que o setor privado. A prática mundial é que esse "excesso" de remuneração do setor público seja de 15%. Não parece que os proventos sejam "limitados".

Bucci esqueceu que a reforma da Previdência em tramitação no Congresso Nacional não elimina os princípios de integralidade e paridade do benefício previdenciário dos servidores, mas apenas determina que serão garantidos para os que se aposentarem com 65 anos para homens e 62 anos para mulheres. Parece que são idades razoáveis para caracterizar "no final da vida".

Os dois princípios mencionados estabelecem que o servidor se aposenta com o último salário e tem a garantia de receber todos os aumentos reais concedidos aos ativos.

Adicionalmente, a população em geral entende que poder se aposentar com 55 anos, por exemplo, e ser elegível à paridade e à integralidade é privilégio. Parece ser o caso. Vale lembrar que as pressões dos servidores sobre os deputados para que a reforma não ande são fortíssimas. E eles sempre vendem para a sociedade que seu interesse é o coletivo. Entende-se, portanto, o esforço de propaganda da reforma pelo governo.

Se a reforma for aprovada, após seis meses as mesmas regras se aplicarão aos servidores dos Estados. E os Estados estão quebrados. Para os Estados, o principal motivo da quebradeira é a folha de servidores ativos e inativos. As regras previdenciárias fazem com que hoje um Estado, para cada coronel da PM da ativa, por exemplo, pague de 20 a 30 benefícios para inativos ou suas viúvas.

No Carnaval, pegou muito mal a informação de que o apresentador Luciano Huck se beneficiou de um empréstimo do BNDES a taxas de juros reais negativas para comprar um jatinho. Tudo legal. A percepção é que houve privilégio.

O grande problema é tratarmos os iguais de forma desigual. Vale para os servidores, vale para os regimes especiais de tributação, Simples e lucro presumido, vale para os empréstimos do BNDES, vale sempre que alguém se beneficia de uma meia-entrada.

Evidentemente, cada qual, e este colunista não é exceção, olha a sua meia-entrada como sendo plena de justificativa e de razões.

O desempenho de nossa economia nos últimos 35 anos sugere que essa economia política não está funcionando bem. Excelente indicação de leitura é "Por que o Brasil Cresce Pouco?" de Marcos Mendes, editado pela Campus.

A guerra de Temer e o Exército no Rio - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 18/02

O Rio de Janeiro não tem governo. Melhor do que estar sob o controle dos presidiários Sérgio Cabral (MDB) e Jorge Picciani (MDB), decerto.

Mas a máquina pública ainda está tomada pelo vírus do MDB. Há conluio entre comandantes da PM e o crime organizado, já disse Torquato Jardim, ministro da Justiça de Michel Temer (MDB). A chefia do Tribunal de Contas foi para a cadeia. Falido, o Rio vive de favor federal e em guerra civil molecular.

Por que não houve intervenção no governo inteiro?

Porque seria um desvio da ofensiva política do governo federal. Desde que a reforma da Previdência estrebuchava, fins de 2017, Temer e turma previam uma "agenda positiva" para 2018, baseada em segurança pública. Seria um mote eleitoral do governismo, de Rodrigo Maia (DEM) inclusive. Mas isso era um plano agora menor e pretérito.

O colapso de Luiz Fernando Pezão (MDB) juntou a fome com a vontade de comer. No Planalto, se diz que de fato não havia mais alternativa a uma baderna criminosa geral. Sim, Temer e turma vão tentar fazer propaganda da intervenção militar na segurança do Rio até outubro. Cuidar do desastre do governo inteiro tiraria o foco da campanha, prejudicaria a tentativa de capitalizar efeitos provisórios da intervenção ou da paz temporária do cemitério.

Vai dar certo, do ponto de vista do governismo?

A pergunta interessa não apenas a Temer e turma, pois a intervenção redefine a conversa política do país. O blá-blá econômico fica à margem, a não ser em caso improvável de fracasso ou sucesso extremado da recuperação do PIB. A reforma da Previdência não volta, mesmo que Temer e turma quisessem, pois suspender a intervenção para votá-la é pedalada constitucional escandalosa.

O Exército não gostou da decisão atabalhoada; militar gosta de planos. Além do mais, desde o final do Império detesta a ideia de servir de polícia ocasional sob ordem da elite. Cansado de missões esporádicas, que acha caras, infrutíferas e desmoralizantes, ainda pede mais poderes e salvaguardas a Temer. Acha que vai conter a desordem, mas apenas para passar logo o bastão a quem possa criar um "sistema de segurança pública eficiente".

Circula outra vez clichê tolo de que o Exército, "treinado para a guerra e combater o inimigo", nada sabe de segurança pública. O Exército não treina para fazer ou investigação ou policiamento sistemáticos. Mas manutenção de paz e ordem é competência de parte da tropa. Os militares passaram 13 anos fazendo justamente isso no Haiti.

Não é de modo algum um prognóstico de sucesso. Temer não tem plano de segurança, e o Exército não substitui uma polícia eficaz.

Mas o Exército não vai ao Rio se fazer de polícia, segundo um general no Rio, mas para criar condições de uma reforma de fundo. Diz o general que pode haver, sim, confronto com bandidos, com alto risco de danos colaterais. Que se vai intervir nos presídios, isolar e tornar incomunicáveis os comandantes presos do crime. Que "muito provavelmente" será necessário trocar comandos da PM e delegados por oficiais, reequipar a polícia e levantar o moral da tropa fluminense.

E se o Exército fracassar? "Resta o Estado de sítio, uma guerra de verdade, um fracasso da nação", diz o general.

A intervenção e as dúvidas - CELSO MING

ESTADÃO - 18/02

Como restringir a intervenção apenas a um Estado se o problema é nacional e não respeita fronteiras?


O presidente Temer apressou-se a desmentir que tenha decretado a intervenção federal no Estado do Rio apenas para produzir cortina de fumaça que oculte o fracasso do projeto de reforma da Previdência, como pareceu. Não há indicações de que a população acredite nisso.

Mesmo que a intervenção tenha sido decidida por outras razões – por exemplo, para tentar reverter a baixíssima aprovação do governo – parece enterrada a reforma da Previdência. A pauta do Congresso tem como prioridade agora a discussão do decreto de intervenção, o que empurraria inevitavelmente o exame do Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Previdência Social, de importante impacto eleitoral, para mais perto das eleições.

O governo quer mostrar ação em outra direção e será cobrado por isso. A falta de resultados imediatos na área da segurança, além de desmoralizar a intervenção, poderia produzir desastre político, também de consequências eleitorais imprevisíveis.

Há apenas algumas semanas, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, tentava desencorajar uma decisão como a comunicada sexta-feira. Argumentava que uma intervenção em Pernambuco desembocaria necessariamente em outras. Agora, passou a defender a intervenção no Rio e abandonou sua posição anterior. Mas ficou difícil sustentar que outros Estados, como o Rio Grande do Sul e o Rio Grande do Norte, não precisem do mesmo tratamento, embora mostrem a mesma anomia na segurança pública e em outras.

A intervenção federal tem por objetivo declarado restabelecer a ordem pública e submeter o crime organizado. As bases da bandidagem serão atacadas e, com elas, o narcotráfico e suas condições de sustentação, assegura ele.

Mas há indicações de que esta não é uma operação planejada, o que, por si só, tende a comprometer seu sucesso. A convocação apressada das autoridades ligadas à área para avaliar a decisão, a rápida mudança de discurso do ministro Jungmann e o apelo a que a população encaminhe sugestões são indicação do grau de improvisação. Uma operação de guerra não se baseia em sondagens populares prévias. Simplesmente põe em marcha decisões amadurecidas pelo Alto Comando.

As Forças Armadas podem ter mapeado certos focos de atuação dos agentes desse estado de violência permanente, pelo menos no Rio e, eventualmente, no Espírito Santo. Mas sobram dúvidas de que a empreitada tenha êxito. Até agora iniciativas desse tipo fracassaram, porque as causas do câncer não foram extirpadas e porque, como outra vez, terão de contar com a colaboração da atual polícia, tão conivente com o crime e tão podre quanto a podridão que se pretende erradicar.

Uma das questões que a nova situação do Rio deve suscitar tem a ver com o âmbito geográfico da segurança que se quer ver restabelecida. Como restringir a intervenção apenas a um Estado se o problema é nacional e não respeita fronteiras? E como evitar que a bandidagem fuja momentaneamente do Rio e busque refúgio em territórios adjacentes e de lá passem a atuar, como aconteceu outras vezes?

Outra questão vai às causas mais profundas. A perda de controle da segurança não ocorreu apenas por gestão incompetente e corrupta das autoridades públicas. Ocorreu porque a droga e o crime viraram negócios tão lucrativos que compram a polícia, compram políticos, compram juízes, compram armamentos pesados, sustentam logísticas complexas, destroem o monopólio da força exercido pelo Estado e sustentam poderoso estado paralelo. Outras regiões do mundo, como Nova York, enfrentaram com sucesso problemas parecidos, com determinação, recursos e com uma polícia competente. Mas, por aqui, estamos a anos-luz de resultados assim.

E há as dúvidas que têm a ver com a economia. O novo adiamento da votação da PEC da Previdência passa o sinal de que o rombo das contas públicas continua se abrindo e, assim, tende a alargar as incertezas e a sabotar a ainda frágil recuperação econômica. Nesta sexta-feira, o mercado financeiro pareceu já contar com esse adiamento. Mas a essas incertezas podem juntar-se as outras, tanto as eleitorais de origem interna como as que estão se avolumando nos mercados globais.

Até agora, a população não sentiu a melhora dos indicadores da economia no dia a dia de suas vidas. Apenas em parte isso pode estar acontecendo porque a falta de segurança passou a ser preocupação central do consumidor e prejudicou outras percepções.

Um dos objetivos do governo com a intervenção parece ter sido criar clima favorável para que os resultados da economia sejam mais bem notados.

Enfim, muitas dúvidas pairam sobre esta decisão.

Um gesto, um olhar, e tudo muda - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 18/02

PSG poderia ter vencido, já que houve chances de gols para os dois lados

Temos o hábito de procurar uma causa que explique os resultados e as atuações das equipes, como estratégias, escolhas e substituições feitas pelos treinadores, o desempenho de jogadores, árbitros e auxiliares ou mesmo o acaso, a sorte e os mistérios. Os motivos, como regra, são múltiplos.

Além do erro do técnico do PSG, Unai Emery, ao escalar, mais uma vez, o jovem e habilidoso meia Lo Celso de volante, do acerto de Zidane ao colocar, durante o jogo, dois meias rápidos pelos lados, saindo Casemiro, da tradição de vitórias do time espanhol e da eficiência de Cristiano Ronaldo, outros fatores imprevistos ocorreram na vitória do Real Madrid, por 3 a 1.

Por causa de detalhes, os dois últimos gols do Real poderiam ter sido do PSG, já que havia um equilíbrio técnico, com chances mais ou menos iguais para os dois lados. Se Daniel Alves tivesse tocado a bola, que passou a uns 30 centímetros diante dele, quase na linha do gol, quando o jogo estava 1 a 1, se o árbitro tivesse marcado o pênalti a favor do time francês, o PSG poderia ter vencido, o técnico seria elogiado por colocar Daniel Alves mais à frente, a atuação de Neymar seria bastante valorizada e o Real seria criticado.

Neymar criou umas quatro chances de gol, deu dois ótimos e decisivos passes e também errou em alguns momentos ao tentar o drible quando deveria passar a bola.

Por ser ambicioso e autossuficiente, características muitas vezes positivas, Neymar, em algumas situações, exagera nos dribles e toma as decisões erradas. Mesmo assim, é enorme o número de passes para gol dados por ele no Santos, no Barcelona, no PSG e na seleção. Neymar gosta do drible artístico, dos efeitos especiais, mas dizer que é um firuleiro e que só joga para ele é falta de bom senso.

CARTESIANO

Com Roger Machado, Miguel Borja tem sido aproveitado no que sabe fazer bem, partir em velocidade para receber a bola à frente. No empate com o Linense, o Palmeiras mostrou, novamente, ser um time tático, organizado, cartesiano, que recua e se posiciona bem quando perde a bola. Falta um pouco de loucura, de pressão no adversário, para tentar recuperar a bola mais à frente. Isso é fundamental. Não confundir com a marcação individual usada por Cuca, com um marcador atrás do adversário por todo o campo.

Roger deu uma boa entrevista no programa Bola da Vez, da ESPN Brasil. Ele une o conhecimento acadêmico, às vezes, com uma linguagem excessivamente operatória, com a prática, pois, quando jogador, era um observador que já pensava em ser treinador. Porém, não respondeu à pergunta sobre qual é a função de Zé Roberto, que foi seu contemporâneo como atleta e que passou a ser auxiliar, antes da chegada do técnico.

Aumentou muito nas comissões técnicas dos clubes e da seleção a presença de ex-atletas e/ou de parentes dos treinadores. Como ninguém explica bem, fica a dúvida sobre quais são as funções desses profissionais. Evidentemente, muitos deles são bem preparados, enquanto outros parecem ter sido indicados por proximidades afetivas e/ou como uma homenagem ou um gesto de amizade.

A troca de favores, a formação de patotas e o nepotismo são males que devastam o país. Pior, isso desestimula os profissionais sérios a se prepararem bem, pois, com frequência, os escolhidos não são os que mais merecem.

Mano a Mano - PVC - PAULO VINICIUS COELHO

FOLHA DE SP - 18/02

Tite quer que seleção crie condições para Neymar driblar e definir jogos na Copa

O departamento de análise de desempenho da CBF tem uma jogada separada que ilustra bem o que se quer na Copa do Mundo. No amistoso contra a Inglaterra, empate por 0 a 0 em novembro, houve poucas chances concretas de gol. Uma delas não virou nem sequer chute à meta do goleiro Hart.

O Brasil puxou contra-ataque com Paulinho e a bola chegou a Neymar frente à frente com o lateral Joe Gomez. O craque brasileiro tentou o drible, mas puxou a bola para o lado de dentro e, sem ângulo, recuou para Marcelo.

A instrução é outra.

A seleção trabalha para deixar Neymar em condição de drible. Quando perceber que está um contra um, a recomendação na Copa do Mundo será: vai você!

Neymar não foi o craque que pensamos na partida de ida das oitavas de final da Liga dos Campeões contra o Real Madrid. No duelo imaginário Cristiano Ronaldo x Neymar, está 1 a 0 a favor de Cristiano. No debate concreto, o Real Madrid está vencendo por 3 a 1. Mas tem o jogo de volta.

Decidir numa jogada individual, atualmente, é mais difícil do que era há 28 anos, quando Maradona dominou a bola na intermediária e levou três marcadores antes de deixar Caniggia frente a frente com Taffarel. Ou quando Garrincha enfileirava Gérson e Jordan, na final do Campeonato Carioca de 1962, com o Canhotinha em início de carreira escalado para marcar Mané, com o lateral esquerdo Jordan em sua cobertura.

O espaço para o drible era maior. Não porque o Maracanã tinha 110 m x 75 m e agora tem 105 m x 68 m, mas porque os jogadores corriam 5 km e hoje percorrem mais de 10 km por jogo --Toni Kroos fez 13 km no jogo do Real Madrid contra o Paris Saint-Germain, na quarta (15).

Mais quilômetros percorridos significam mais aproximação de três defensores para marcar o mais criativo atacante adversário. Neymar vai ter sempre dois ou três pela frente, na Copa do Mundo.

A não ser que se crie condição diferente para o craque brilhar.

Técnico da seleção brasileira de basquete na Olimpíada de Moscou, Cláudio Mortari dizia há três décadas que o futebol ficaria parecido com o basquete. Ficou.

A imagem de Neymar no departamento de análise de desempenho no lance de Brasil x Inglaterra indica que é preciso atrair a defesa adversária para um lado e virar o lado da jogada para tentar deixar o maior talento com, no máximo, um marcador. No mano a mano, ele resolve.

Michael Jordan resolveu jogos como a final da NBA de 1998 contra o Utah Jazz numa jogada individual. Coisa de gênio. Messi e Cristiano também podem fazer. Idem Neymar.

Mas o que Tite propõe é criar a condição de deixar o craque no um contra um. Na mesma decisão da NBA de 1998, definida por Michael Jordan, o armador Stockton, do Utah Jazz, passou por todo o garrafão para enganar a defesa e poder arremessar. Jogada ensaiada. Recebeu o passe quando estava sem marcação. Três pontos!

O jornalista Jonathan Wilson, autor de "A Pirâmide Invertida", diz que o Brasil não é só técnica e sempre houve tática nas jogadas ofensivas. A diminuição de espaço exige esse trabalho mais ainda.

Tite quer que o drible decida a Copa. Para isso, trabalha para deixar os craques no mano a mano.

Aceita que dói menos - MARCELO BARRETO

O GLOBO - 18/02
Um dos grandes desafios do século XXI é aprender a lidar com tamanha liberdade de expressão

O mundo do futebol estava sensível esta semana. A reação ao deboche de Vinícius Jr com o chororô tomou tal proporção que mandou para fora do Estado a final da Taça Guanabara, atrasando uma reaproximação entre as diretorias de Flamengo e Botafogo. Uma crítica de Casagrande a Neymar Jr, chamando o craque de mimado no “Redação SporTV”, levou Neymar Sr a postar um textão ilustrado por uma fênix e pontuado por alusões ao problema de Casão com as drogas. E uma pergunta do repórter Júlio César Santos a D’Alessandro depois de um jogo do Inter, por incluir a expressão “joga fácil”, provocou um palavrão ao vivo na resposta: “Eu trabalho para c... Ficar falando numa mesa, atrás de um microfone, é que é fácil.”

As três reações têm em comum a razão do ofendido e o exagero na resposta. Cada um sabe onde o calo aperta. O torcedor do Botafogo detesta ser chamado de chorão, especialmente quando o deboche vem do Flamengo; os Neymares odeiam que se fale em mimo, expressão crítica ao comportamento do filho e aos cuidados do pai; e não só D’Alessandro, como praticamente todos os jogadores de futebol se incomodam com o que consideram desconfiança de sua ética de trabalho.

No mundo ideal da boleirada, o espaço para a crítica seria muito limitado: só quem sabe o que acontece dentro do campo estaria habilitado a tecer qualquer comentário. Torcedores, jornalistas e até ex-jogadores — por já estarem afastados do dia a dia — estariam, nesta ordem, desqualificados. Quando dizem “Só minha família sabe o que eu passei para chegar até aqui” nos momentos de conquista, os jogadores expressam o desejo de exercer uma atividade que só pode ser discutida no próprio ambiente do trabalho ou em casa.

Mas o futebol é uma arena pública. Como outros esportes, é praticado por especialistas — e cada vez há mais ciência na preparação de seus atletas: médicos, fisioterapeutas, fisiologistas, analistas de desempenho. Mas só se transformou em fenômeno de massa porque entrou no imaginário dos não especialistas. São os torcedores, com seu conhecimento limitado (e, muitas vezes, a ilusão de que o que aprenderam na várzea ou nas peladas de fim de semana os transforma em doutores da matéria), que o sustentam. E os jornalistas — que já chamei de “imperfeitos porta-vozes” num texto sobre Dunga, espécie de pioneiro na incompreensão da relação com a imprensa — fazem a ponte.

Em seu livro “Sapiens — Uma breve História da Humanidade”, o historiador israelense Yuval Harari defende que o homo sapiens se tornou dominante sobre as outras espécies por ter um dom em especial: a fofoca. Não é a fala em si, mas o que se faz com ela — recontar o dia, trocar experiências e impressões, expressar ideias, criar metáforas. Com essas habilidades, o ser humano aprendeu a transcender. É assim, por exemplo, que 22 homens correndo atrás de uma bola num retângulo de grama por 90 minutos passam a representar uma das maiores paixões do planeta.

Na era das mídias sociais, a crítica está mais presente, mais imediata — não apenas para jogadores, mas para jornalistas, políticos, músicos, youtubers, quem quer que atue numa arena pública. Um dos grandes desafios do século XXI é aprender a lidar com tamanha liberdade de expressão. Nem tudo é transcendência, ofensa à honra, desrespeito à instituição. Uma opinião pode ser só isso: a nossa opinião. Discordou? No futebol, não há espaço melhor para provar que ela está errada do que o campo.

O jogador invisível - UGO GIORGETTI

ESTADÃO - 18/02


A beleza do futebol de Tchê Tchê reside no detalhe, exige gosto por certo tipo de futebol


Quase ninguém fala nele. Nem bem nem mal. Para as entrevistas solicitadas no final de cada partida, raramente ele é chamado. A impressão que se tem é que só é entrevistado quando todos os demais jogadores já foram embora e só teria sobrado ele para atender o repórter retardatário. Se não fosse isso, ele poderia ter saído tranquilamente, discreto, se esgueirando por trás das câmeras como uma sombra. E apenas sombra continua nos comentários da imprensa sobre o comportamento da equipe, quando todos são analisados, para o bem e para o mal, menos ele.

Acredito que não seja antipatia gratuita, muito menos perseguição. É que ninguém parece saber o que fazer com ele ou o que falar dele. No entanto foi um dos heróis da equipe do Palmeiras campeã brasileira de 2016, sob o comando de Cuca. Continuou titular absoluto com Eduardo Baptista, manteve seu posto de novo sob Cuca, foi mantido sem nenhuma dúvida por Alberto Valentin e, finalmente, agora, sob direção de Roger Machado, num time recheado de estrelas recém-contratadas, se mantém titular, sem discussão.

Por incrível que pareça, é um dos poucos jogadores que ainda restam do time campeão brasileiro. Cuca é o responsável pela sua contratação e nisso mostrou argúcia e certeira intuição de um treinador de talento. Discutiu pessoalmente com ele as condições do contrato e deu-lhe imediatamente a camisa de titular, que nunca mais tirou.

O nome desse jogador invisível é Tchê Tchê. Fiquei muito impressionado desde a primeira vez que o vi jogar e tenho seguido suas atuações sem nunca me decepcionar. É moderníssimo, mas se disfarça de jogador de outros tempos. A beleza de seu futebol reside no detalhe, exige olho, atenção e gosto por um certo tipo de futebol. Parece apenas um médio-volante que dá uma ajuda à defesa, e é muito mais que isso.

De repente, quase sem ser notado, surge em lugares inesperados do campo e de seus pés saem invariavelmente passes certos. Passes feitos com ambos os pés, indiferentemente. Toma com frequência a melhor decisão que o lance exige e isso é o segredo de seu futebol. Se o lance exige providência simples, ele age com simplicidade. Se o lance exige agudez e passe em profundidade, o passe sai.

Na mais turbulenta região do campo, onde marcação dupla e pancada é coisa comum, consegue jogar e fazer jogar. Tudo discretamente. Como um jogador antigo que finge ser, movimenta-se em silêncio pelo campo. É necessário descobri-lo, pois não se exibe.

Mas, além da classe e do toque refinado, Tchê Tchê tem outras características que o jogam para trás, para um mundo de um futebol mais criativo e perdido. A começar pelo nome. Neste momento em que jogadores de futebol têm nomes e sobrenomes, como senadores do Império saídos das páginas de Machado, Tchê Tchê carrega um velho apelido, agora raríssimo, quase da época de Cabeção, Ratinho e Pé de Valsa. Também se distingue por ter sido revelado num clube pequeno e custado pouco, o que hoje pode soar como coisa de menor valor, já que a moda é pagar caro.

Por fim, é um dos poucos jogadores de sucesso saídos da quase destruída várzea paulistana e do futebol de salão da cidade. É, portanto, um dos últimos produtos futebolísticos de uma São Paulo que fabricava craques. Talvez esse acúmulo de coisas um pouco fora de moda ajudem a que seja tão pouco notado ou que não se encontre como defini-lo corretamente. Algo me diz, entretanto, que a torcida sabe avaliar seu jogo. E, por uma vez, não só a torcida. Outro dia, acho que depois do jogo com o Mirassol, Roger Machado, quando solicitado a identificar os destaques do Palmeiras revelou Borja e Tchê Tchê. Finalmente alguém estava olhando para ele.

O mundo está complicado - ALBERT FISHLOW

ESTADÃO - 18/02

Há um movimento generalizado contra a nação-Estado


O que sucedeu com a evolução pacífica do nosso mundo supostamente avançado?

Praticamente em todos os lugares, felizes acontecimentos, como o carnaval, o Dia dos Namorados, o Dia do Presidente nos Estados Unidos, o ano-novo chinês, têm dado lugar a evidências de que a violência está em crescente aumento. Essa mudança de estação, normalmente trazendo a esperança de uma primavera e um outono agradáveis, tornou-se uma mostra do desaparecimento do compromisso, interno e externo. Há um movimento generalizado contra a nação-Estado, uma resistência persistente à imposição da autoridade centralizada. Os acordos internacionais mudaram da obrigação para a participação voluntária, mesmo quando envolvem assuntos vitais, como a mudança climática. Os interesses domésticos hoje dominam, mesmo em países que têm mantido um executivo forte.

Nos Estados Unidos, acaba de ocorrer mais um massacre em uma escola, com a morte de alunos e professores. Ao mesmo tempo, as tentativas para resolver o problema dos jovens imigrantes desmoronaram no Senado. Ambos os casos resultam do poder resoluto da Associação Nacional do Rifle e dos evangélicos que pretendem que toda a política interna do país deixe de ser regulamentada pelo governo federal.


No Brasil, o Rio de Janeiro se transformou em uma zona onde a intervenção federal precisou ser imposta para se restaurar a ordem. O carnaval engendrou uma grande e contínua violência. A vitória da Escola de Samba Beija-Flor ressaltou a impossibilidade da mobilidade de jovens e indivíduos sem estudo. Vimos muita referência aos ricos e corruptos, dentro e fora do governo, como também uma profusão de artilharia e rejeição dos direitos da comunidade LGBT.

Na Europa, a Alemanha foi forçada a recuar da sua política de aceitação de refugiados, como também de um gabinete de governo onde os social-democratas assumiram posições importantes. Quatro meses após a última eleição, finalmente um novo governo foi formado – sujeito à aprovação do Partido Social Democrata. O único ponto de aparente coerência é a resistência ao partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha. Em outros países-membros da União Europeia – Hungria, Polônia e República Checa –, as posições de direita se fortaleceram. O Brexit, na Grã-Bretanha, aprovado num referendo nacional, foi a primeira saída da União Europeia.

Na Ásia, a ênfase não é mais nos direitos humanos mínimos, e agora o foco único é na expansão econômica, e se tornou o principal objetivo dos governos. O caso da China é o mais notório, mas Filipinas, Tailândia e Mianmar têm se mostrado mais agressivos na resistência ao princípio. Mas as consequências externas desta incapacidade de se chegar a um compromisso racional são ainda mais dramáticas.

A Síria é o melhor exemplo. Ali estão presentes forças de Irã, Turquia, Rússia, Estados Unidos e curdos. O objetivo comum é aniquilar o Estado Islâmico. Mas conflitos entre os participantes ocorrem regularmente, como um gás venenoso, com poucas perspectivas de um fim. E a realidade se torna ainda mais complexa quando acrescentamos o Líbano, com seus vínculos com Hezbollah, e Israel, como nações diretamente envolvidas.

Ao mesmo tempo, o apelo do Iraque por recursos necessários para sua reconstrução, após os sucessos militares do ano passado, não foi atendido como o desejado. Do total de US$ 88 bilhões pretendidos, o país obteve US$ 30 bilhões, especialmente na forma de empréstimos à exportação. Os Estados Unidos não prometeram mais ajuda.

O primeiro-ministro Haider el-Abadi deve ser restabelecido no cargo após a eleição parlamentar em maio. Embora ele seja um herói nacional por tudo o que realizou, seu predecessor Nouri al-Maliki, com quem os Estados Unidos tiveram muitos desacordos, pretende candidatar-se novamente. Uma solução democrática é duvidosa.

Poderíamos citar muitos outros problemas internacionais. Implícito em muitos deles está o papel dos Estados Unidos. Os gastos com a Defesa deverão aumentar, ao passo que a cooperação com os aliados terá menor importância. No mundo atual isso é perigoso.

Pode não ocorrer nenhum problema interno com os déficits financeiros, mas a insistência no sentido de contas comerciais positivas com todos os parceiros provoca uma forte reação. O Nafta continuará sendo um importante acordo comercial entre Estados Unidos, Canadá e México? A China enfrentará tarifas aumentadas se não conseguir controlar a Coreia do Norte? Haverá uma nova relação com a Grã-Bretanha?

O mundo, atualmente, é um lugar complicado.

Política externa, sua relevância - CELSO LAFER

ESTADÃO - 18/02
É preciso saber caminhar na complexidade atual para o País não perder o controle de seu destino

A política externa é uma política pública. Pode ser retratada como um processo de tradução qualitativa e quantitativa de necessidades internas em possibilidades externas. Esse processo tem suas dificuldades e seus desafios analíticos, pois é preciso identificar quais são, em determinada conjuntura de um país, as suas necessidades prioritárias e quais são as possibilidades externas de torná-las efetivas. A experiência diplomática também aconselha avaliar qual é o impacto externo da afirmação de necessidades internas. É o que cabe lembrar a propósito do America First de Trump e da política nuclear da Coreia do Norte.

Na análise das necessidades internas, vale a pena destacar que a área das relações internacionais não é como um campo de futebol, onde o claro objetivo dos dois times em confronto é, dentro de regras estabelecidas, ganhar o jogo num tempo e num espaço definido. Não é também, num grau muito maior de dificuldade, como a área da economia, no âmbito da qual o tema central é a escassez e a discussão transita pelos meios de superá-la. Os objetivos das relações internacionais, definidores das necessidades internas, não são unívocos. São plurívocos e frequentemente esquivos, podendo resultar da maior ou menor atribuição de peso à segurança, ao desenvolvimento, ao prestígio, à propagação de ideias, à cooperação internacional, à agenda normativa da ordem internacional, aos desafios da sustentabilidade do meio ambiente.

A segurança é sempre um objetivo relevante de política externa, pois está voltada para, no limite, assegurar a manutenção de um Estado como um ator independente num sistema internacional que vive à sombra da guerra. Esta, como se sabe, é um camaleão que assume sempre novas formas. É compreensível que a Coreia do Sul e o Japão, diante do aumento dos riscos de um conflito nuclear na região, atribuam à segurança a dimensão de uma imperativa necessidade interna muito superior, por exemplo, à relevância do tema para a política externa da Suíça. As circunstâncias da inserção internacional de um país são, por isso mesmo, um dos dados dos distintos pesos atribuídos aos objetivos da política externa.

A avaliação de como traduzir necessidades internas em possibilidades externas passa por uma adequada compreensão das características de funcionamento do sistema internacional e de suas mudanças, e nesse contexto, para recorrer a uma formulação de Hélio Jaguaribe, da latitude de suas condições de permissibilidade, vale dizer, do juízo diplomático do que está ou não está, em distintas conjunturas, ao alcance dos alvos da política externa de um ator internacional. Mudar a geografia econômica do mundo, por exemplo, foi uma das aspirações da política externa do presidente Lula, que não estava ao alcance do Brasil. Era um objetivo inconsequente a serviço da sôfrega busca de prestígio internacional do lulopetismo.

O desenvolvimento do espaço nacional tem sido o objetivo recorrente da política externa brasileira desde o deslinde, no início do século 20, da delimitação das fronteiras nacionais por Rio Branco. Ilustro com dois distintos protótipos.

A política externa de JK, voltada no plano interno para alcançar os “50 anos em 5”, corporifica nas condições dos anos 1950 e das brechas na bipolaridade Leste-Oeste uma ação que, conjugando diplomacia presidencial, uma renovada diplomacia econômica e prestígio, logrou traduzir a necessidade interna do desenvolvimento em possibilidades externas.

O presidente FHC, levando em conta as transformações do sistema internacional e o processo de globalização, buscou a autonomia pela participação como caminho para o desenvolvimento. Elevou o patamar de presença do Brasil no mundo, conferindo locus standi ao País, associando coerentemente o externo com o interno das práticas democráticas, da estabilidade da moeda, da responsabilidade fiscal, da maior abertura da economia ao exterior, do respeito aos direitos humanos, da preocupação com o meio ambiente.

Faço estas considerações para observar que o Brasil é um país de escala continental, inserido na América do Sul, mais distante, por isso mesmo, na sua História, dos grandes focos de tensão da vida internacional. Por isso, menos atento ao mundo, como se vê no debate público, mas que, no entanto, necessita do mundo para desenvolver-se. Como diria Hannah Arendt, somos do mundo e não estamos apenas no mundo, o que exige, para o juízo diplomático de traduzir necessidades internas em possibilidades externas, saber orientar-se no mundo.

Esse saber não é fácil, nem pode valer-se de fórmulas feitas, dadas as características do sistema internacional contemporâneo. Este tem entre as suas notas, inter alia, uma multipolaridade que desborda das instituições multilaterais; uma balcanização que leva à fragmentação do espaço mundial, que se dissolve e se reestrutura em torno de grandes polos regionais, ao mesmo tempo interdependentes e rivais; disrupções graves de que é um grande exemplo a massa dos refugiados; uma proliferação da violência que a onipresença do terrorismo patenteia; o inédito impacto do ciberespaço e das novas tecnologias na vida das pessoas; a sublevação dos particularismos, dos fundamentalismos e a geografia centrífuga das paixões que acarretam; a diversidade crescente da população mundial.

É nesse contexto que se torna mais intrincado o desafio diplomático de identificar interesses comuns e compartilháveis e lidar com a Torre de Babel da heterogeneidade contemporânea. É por essa razão que, para levar a bom termo a interação necessidades internas-possibilidades externas, é preciso saber caminhar na complexidade contemporânea para o País não perder o controle de seu destino.

É assunto que merece e precisa estar presente no debate político da eleição presidencial deste ano.

* PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002).

Crise humanitária venezuelana já afeta o continente - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 18/02

Fluxo de refugiados do regime de Maduro na América Latina exige ação urgente de instituições multilaterais para ajudar os países que acolhem estes imigrantes

Enquanto a Venezuela mergulha vertiginosamente no mais grave desmantelo político, econômico e social de sua história, cidadãos de todas as classes, asfixiados pela crise da ditadura de Nicolás Maduro, abandonam o país num êxodo de proporções épicas. Este fluxo instaura na América Latina, sobretudo em Brasil e Colômbia, grave problema humanitário, comparável aos dramas de refugiados no Oriente Médio e na Ásia.

Segundo o “Wall Street Journal”, desde que os efeitos da crise global chegaram ao país bolivariano, três milhões de venezuelanos (um décimo da população) abandonaram o país; 1,2 milhão só nos últimos dois anos. No fim de 2017, a Colômbia havia abrigado 550 mil cidadãos do país vizinho, um aumento de 62% em relação a 2016. Desde janeiro deste ano, mais 50 mil refugiados entraram na Colômbia. São números que se comparam aos 600 mil sírios que pediram asilo à Alemanha, e aos 700 mil rohingyas que fugiram de Mianmar para Bangladesh.

No Brasil, números da Superintendência da Polícia Federal de Boa Vista, principal porta de entrada dos refugiados, mostram que só nos primeiros 45 dias de 2018, 18 mil venezuelanos pediram formalmente abrigo na capital de Roraima, ante 17,8 mil em todo o ano passado. A PF de Boa Vista estima uma média diária de 600 pedidos de refúgio. São pessoas desesperadas, em fuga da escassez de alimentos e remédios, do desemprego, da repressão, entre outros infortúnios. Calcula-se que 40 mil refugiados entraram no Brasil pela fronteira com Roraima em 2017. Neste ano, já são dez mil.

O venezuelano que chega ao Brasil pertence à faixa mais pobre da população. Já um estudo da PF mostra que dos 17,8 mil venezuelanos que solicitaram abrigo em 2017, 1,9 mil (6,2%) são engenheiros e 862 (4,8%), médicos, mesmo percentual de economistas.

Esta situação levou o governo federal a decretar estado de “emergência social”, atendendo, enfim, ao pedido do governo local, reiterado várias vezes desde 2016. A medida prevê o aumento do contingente da Força Nacional para aumentar a vigilância de fronteira e triagem sanitária, sobretudo em Boa Vista e Pacaraima, que recebem a maior concentração de imigrantes. O governo federal aprovou ainda a montagem de um hospital de campanha para acolher e fazer triagem dos refugiados, diante do risco do surto de doenças contagiosas, como sarampo.

O fluxo de refugiados trouxe a crise da Venezuela para os países vizinhos. Estes, sozinhos, não conseguirão dar conta da tarefa humanitária que se impõe, tanto no acolhimento dos refugiados, como também na montagem da infraestrutura necessária para isso. A ajuda de organismos multilaterais e países desenvolvidos será, nesse sentido, crucial. Ao mesmo tempo, é preciso aumentar a pressão diplomática internacional sobre Maduro, para forçar o país a voltar à democracia.

Não é que há boas notícias - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 18/02

Saídas oportunistas têm sido rejeitadas nas estatais, e pode haver mais avanço


A Petrobras passou por graves dificuldades financeiras.

A Caixa Econômica assistiu à piora do seu já historicamente fraco resultado, com uma taxa de retorno menor do que o custo do capital investido.

Resultou em imenso fracasso a experiência, na última década, de expansão com muita volúpia e pouca ciência das empresas estatais. Recursos públicos escassos foram destinados a projetos economicamente inviáveis, resultando em refinarias fechadas e obras incompletas —elas custaram muito mais do que o estimado e não levaram aos benefícios esperados, mas apenas ao aumento da dívida pública.

A incompetência reduz lucros no setor privado, provocando desemprego e quebra de empresas. Já no setor público frequentemente surgem ideias criativas para, à custa da sociedade, cobrir os problemas do passado e fazer de novo.

Desta vez, contudo, a reação tem sido diferente. A nova lei das estatais e gestores comprometidos com a solidez da coisa pública vêm promovendo profundas alterações na forma como são administradas empresas como a Petrobras, a Caixa e a Eletrobras.

Saídas oportunistas têm sido rejeitadas, como usar parte dos recursos do FGTS para cobrir os problemas na Caixa. Novos estatutos têm sido aprovados para garantir maior profissionalização na escolha de executivos e transparência nos custos de execução de políticas públicas, que deverão ser arcados com recursos da União.

A agenda de reformas pode avançar mais. Um exemplo é a gestão do FGTS, monopólio da Caixa, que recebe 1% de taxa de administração, bem mais do que o setor privado cobraria. Além disso, os trabalhadores recebem uma remuneração menor do que a taxa de juros de mercado. Para se ter uma noção da diferença, cada real aplicado em títulos públicos em dezembro de 2007 valeria, atualmente, quase duas vezes mais do que se fosse corrigido pelas regras do FGTS.

A justificativa para o modelo atual, além de gerar receita para a Caixa, é subsidiar investimentos em saneamento e em habitação. Como na reforma da TLP (Taxa de Longo Prazo), porém, seria melhor que esses subsídios fossem concedidos de forma transparente e democrática no Orçamento da União, com seus resultados avaliados contrapondo custos e benefícios, e não por meio do confisco de parte da poupança dos trabalhadores.

Uma opção seria dar aos trabalhadores o direito de escolher em qual instituição seriam depositados os seus recursos do FGTS para a compra de títulos públicos, recebendo a remuneração de mercado e pagando a menor taxa de administração que a concorrência permitir. A contrapartida seria a redução dos subsídios precariamente avaliados que não transitam pelo orçamento público, inclusive os que beneficiam a Caixa.

Rios da indiferença - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 18/02

Um governador que não se prepara para o carnaval é uma figura inútil

Escrevo a caminho de Pacaraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Saí diretamente do Rio para cá. Suponho que a sociedade também tenha essa tendência ao equilíbrio, uma espécie de sistema nervoso autônomo. Se é assim, creio que já deu sinais de que algo vai mal tanto no organismo nacional como no sul-americano.

O Rio foi tomado por inúmeros casos de violência e assalto. Apesar de tantos avisos, o governador Pezão confessou que o estado não se preparou para o carnaval. Como se uma festa tão antiga e previsível fosse um raio em céu azul. O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, disse que iria aproveitar a folga do carnaval e viajar para a Europa, em busca de experiências “inovativas”. Folga, como assim? Trabalhei no carnaval por escolha, se quisesse poderia estar fantasiado em qualquer esquina. Mas um prefeito não tem folga no carnaval. É precisamente o período em que tem de cuidar de tudo, para evitar o pior. Pezão ainda não conseguiu ler o plano de segurança. Crivella se elegeu dizendo que iria cuidar das pessoas. Será que foliões, fantasiados, seminus e alegres, não são pessoas?

Essas coisas nos colocam próximos de uma desordem generalizada. As principais autoridades parecem não entender o que está se passando. A tarefa do equilíbrio, a homeostase, torna-se cada vez mais complicada.

Aqui na fronteira, as coisas não são diferentes. Estive em Pacaraima duas vezes, e uma em Santa Helena, já na Venezuela. Previ que a situação iria se agravar, o que não é nenhuma vantagem, apenas o óbvio. Por aqui já passaram mais de 40 mil. Na Colômbia, um milhão de refugiados cruzaram a fronteira. As ferramentas diplomáticas, Mercosul, Unasul e mesmo a OEA, são incapazes de achar uma saída. Talvez o único caminho seja internacionalizar uma crise que transcende a capacidade sul-americana. Mas o que pode fazer a ONU? A Europa está sobrecarregada pelo fluxo de refugiados no Mediterrâneo. E os Estados Unidos, com a escolha de Donald Trump, fecham-se cada vez mais para as tragédias do mundo.

Como um sistema nervoso autônomo, os mecanismos de monitoramento continuam funcionando. Eles registram os desequilíbrios, indicam as desordens. No entanto, não se encontra remédio. A tarefa do sistema nervoso central está atrofiada, não há antecipação planejada, apenas uma espera na crise para intervir quando for tarde demais. O colapso do governo no Rio, por corrupção e incompetência, já era um sinal de que a crise de segurança se agravaria. A escalada repressiva de Maduro, uma certeza do êxodo em massa para Colômbia e Brasil.

Assim como no corpo, o sistema nervoso autônomo na sociedade precisa de mais atenção. No corpo, é ele que nos desestimula, por exemplo, a disputar uma corrida depois de um farto almoço.

Embora isso não explique tudo, creio que os governantes em Brasília e no Rio não se importam tanto com esses desequilíbrios porque estão atentos a outros sinais. Ambos têm problemas com a polícia, ambos se esforçam para escapar dela. Não creio que uma antecipação conseguiria resolver as crises em Pacaraima ou Copacabana. Mas, certamente, ajudaria.

Um governador que não se prepara para o carnaval, um prefeito que vê nele uma folga para buscar soluções na Áustria, na Alemanha e na Suécia, são figuras inúteis.

No caso da Venezuela, Temer pode dizer que o governo anterior não só apoiou como se tornou cúmplice da tragédia produzida por Maduro. Mas Temer era vice-presidente. Não é possível que só tenha percebido agora como o Brasil errou.

E, agora, as coisas são bem mais difíceis. Em Roraima, segundo as pesquisas, a população, majoritariamente, rejeita os imigrantes. Em termos regionais, nas eleições, pode acontecer ali algo que aconteceu na Europa: um avanço da xenofobia.

Nesse caso, como aliás em tantos outros, é preciso preparar o corpo para pancadas de todos os lados. A direita gostaria de ver a fronteira fechada. E a esquerda, assim como Crivella, que não vê pessoas na multidão carnavalesca, dificilmente enxerga direitos humanos nas milhares de famílias que fogem do socialismo do século XXI, como se autoproclama a aventura bolivariana.

A recuperação está aí. A sustentabilidade, não - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

ESTADÃO - 18/02

A parte ruim do cenário é que tudo indica que a reforma da Previdência não será votada


Em nosso País vivemos uma contradição: em 2018, o rumo da economia é cada vez mais claro, na exata medida em que o rumo da política é cada vez mais incerto. Isso não quer dizer que exista um descolamento das duas partes, mas, sim, que elas se encontrarão mais adiante e só aí saberemos se a retomada atual será transformada em sustentada ou se viveremos, mais uma vez, um “voo da galinha”.

Voltemos à economia. Estamos cada vez mais seguros de que o crescimento será bem robusto. Os dados disponíveis mostram que o último trimestre deve ter apresentado um crescimento positivo e, nesse caso, o mais provável é que a expansão do PIB tenha sido de 1,1% ou mais em 2017. No ano em curso, nossa projeção é de 3,5%.

Todos os setores deverão crescer, inclusive construção e indústria. Do lado da demanda, o consumo das famílias seguirá se ampliando, cada vez mais embalado pela recuperação do emprego e pela queda das taxas de juro. Ao mesmo tempo, e como o último trimestre do ano passado já mostrou, veremos um crescimento relevante na formação de capital (7,7%).

No item investimentos, notamos três diferentes linhas de expansão: de um lado, a construção residencial está começando a andar; de outro, observamos uma boa demanda por reposição de máquinas e equipamentos, explicável pela ausência de atualização nos últimos cinco anos. O natural desgaste e a retomada do crescimento em muitos segmentos da economia estão por trás desse movimento. É interessante observar que isso está ocorrendo por causa do aumento das horas trabalhadas (como segundo turno), sem que estejamos vendo um aumento significativo de fábricas novas. Finalmente, e como já mencionado em artigos anteriores, há uma expansão mais robusta de investimentos na área de petróleo e em certos segmentos de energia elétrica, como a transmissão em alta tensão, a eólica, a solar, etc.

Ao lado do crescimento mais robusto, a nossa percepção é que a inflação também caminha para um resultado melhor do que os 4% projetados na virada do ano. Temos a convicção de que ela poderá ficar numa faixa entre 3,5% e 4%. O próprio resultado do IPCA de janeiro (0,29%) já foi um indicador dessa possibilidade. Existem três razões que devem ser consideradas. A primeira tem a ver com os preços agrícolas: embora seja verdade que não veremos outra rodada de queda nas cotações, a safra em curso mais os estoques de passagem sugerem que não haverá pressões altistas no custo da alimentação. Por outro lado, os preços internacionais do petróleo ficaram um bocado de tempo na faixa dos US$ 70 para o tipo Brent. Nossa percepção é que, ao longo deste ano, a oferta de petróleo vai aumentar e nos parece mais provável que as cotações recuem para a faixa dos U$ 60, o que implicaria uma redução relevante dos preços de derivados no mercado interno. Finalmente, as chuvas de verão estão ocorrendo dentro da normalidade, o que deverá conduzir os preços da energia elétrica para níveis normais.

Os mecanismos de realimentação da inflação seguem bastante enfraquecidos. Basta pensar nos contratos reajustados por um IGP-M negativo e no INPC de 2,1% em 2017, relevante para o salário mínimo e nos dissídios.

Apesar de todas as melhoras mencionadas, ainda temos muita capacidade ociosa e uma taxa de desemprego ainda elevada. Nessas condições, não é fora de propósito que a Selic seja reduzida a 6,5%. Chamo a atenção para o fato de que, nessas circunstâncias, o PIB nominal deverá ser maior do que a Selic, algo que não ocorre há muito tempo.

A parte ruim do cenário é que tudo indica que a reforma da Previdência não vai mais se votada, ficando todo o peso para o próximo presidente. O ajuste das finanças públicas é cada vez mais indispensável, e a consolidação da retomada do crescimento depende integralmente disso. Entretanto, e diferentemente do que muitos acreditavam em agosto/setembro passados, não houve nenhuma explosão no curto prazo. A boa gestão fiscal realizada pela equipe econômica e a melhor arrecadação resultante da retomada proporcionaram um resultado em 2017 melhor do que o esperado.

Por essa razão, a Instituição Fiscal Independente reviu a evolução da relação dívida/PIB: o pior momento se daria em 2024, chegando a 86,5% e declinando a partir de então. Fernando Montero e Sergio Valle têm projeções até um pouco mais suaves.

*ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS

Um alerta para as redes sociais - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 18/02

Elas podem fazer muito mais do que estão fazendo para combater as notícias mentirosas


O debate sobre a responsabilidade do Facebook e outras redes sociais ganhou contornos mais concretos na segunda-feira passada. A empresa Unilever, uma das maiores anunciantes do mundo, informou que cortará os investimentos de publicidade nas redes sociais se elas não combaterem fake news, publicações de ódio ou conteúdos tóxicos em suas plataformas. No ano passado, a empresa investiu US$ 9,4 bilhões em ações de marketing, tendo destinado cerca de um terço desse valor a anúncios digitais.

Como lembrou Keith Weed, diretor da Unilever, a confiança nas mídias sociais caiu diante da evidência de que as empresas de tecnologia não estão retirando de suas plataformas conteúdos ilegais, antiéticos e extremistas. “Fake news, racismo, sexismo, terroristas espalhando mensagens de ódio, conteúdo tóxico dirigido a crianças... A Unilever, como uma empresa confiável, não quer anunciar em plataformas que não contribuem positivamente para a sociedade”, disse Weed, que não se referiu a uma plataforma específica.

No ano passado, várias empresas europeias e até o governo da Grã-Bretanha decidiram retirar seus anúncios do Google e do YouTube depois que se soube que as peças eram exibidas ao lado de conteúdo inapropriado, com mensagens extremistas de diversos tipos. Mark Pritchard, diretor de marca da Procter & Gamble, reclamou que anúncios da marca tinham aparecido junto a vídeos de recrutamento do Estado Islâmico, dando a impressão de que a empresa apoiava a organização terrorista.

A reação da Unilever aponta, no entanto, para uma questão mais abrangente e ainda mais grave. O problema não se resume a eventuais erros do algoritmo utilizado pelas redes sociais, expondo anúncios comerciais ao lado de conteúdo inapropriado. Trata-se de um alerta sobre o ambiente encontrado nas redes sociais. Ao alertar que, se não houver um combate à difusão de notícias mentirosas e publicações de ódio, cortará seus investimentos nas mídias sociais, a Unilever afirma que as redes sociais podem fazer mais do que estão fazendo - e que essa omissão é inadmissível.

Não há dúvida de que as redes sociais têm sido ambiente fértil para a difusão de notícias mentirosas, com graves consequências políticas e sociais. Recentemente, até o Facebook reconheceu que podia causar danos à democracia. “As redes sociais podem apresentar um risco à democracia ao permitir a divulgação de mentiras”, disse Samidh Chakrabarti, diretor de produto e responsável pelas políticas globais da empresa. Na ocasião, ele prometeu que o ano de 2018 seria dedicado a neutralizar os riscos causados pela rede social.

No entanto, as empresas que controlam as redes sociais continuam atuando como se o problema não as afetasse diretamente. Querem fazer crer que a responsabilidade pela difusão de notícias mentirosas e de conteúdo antiético caberia tão somente aos maus usuários. As redes sociais seriam, em último termo, ambientes de liberdade e, como tais, imparciais.

Tal visão das coisas, é óbvio, não corresponde à realidade. As redes sociais não são imparciais. Seus algoritmos interferem decisivamente no que cada usuário vê. A ausência de neutralidade foi reconhecida, por exemplo, pelo Facebook ao anunciar, no início do ano, que passaria a privilegiar, no mural de notícias (a timeline), o tráfego de postagens pessoais em detrimento de publicações produzidas por veículos de comunicação. Ou seja, é a empresa que define como será a suposta “neutralidade”.

As redes sociais podem fazer muito mais do que estão fazendo para combater as notícias mentirosas. E o primeiro passo é reconhecer que não se trata apenas de uma possibilidade, mas de um dever. Elas são responsáveis por assegurar que suas plataformas não sejam um ambiente de criminalidade, de abuso de poder, de desinformação. Se continuarem se omitindo, a consequência é cristalina, como indicou a Unilever. Receberão cada vez mais de pessoas e de empresas a alcunha de inidôneas.

Pezão precisa sair do governo do Rio - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP/O GLOBO - 18/02

A ideia da intervenção do governo federal na Segurança do Rio veio tarde e é curta. O governador Luiz Fernando Pezão precisa ir embora. Não tem saúde, passado, nem futuro para permanecer no cargo num estado falido, capturado por uma organização criminosa cujos chefes estão na cadeia. Como? Ele desce do gabinete, entra no carro e vai para casa.

Na quinta-feira, quando esteve no Planalto, Pezão disse a Temer que a situação da Segurança Pública do Rio saíra do seu controle. Ao deputado Rodrigo Maia, mencionou a “calamidade” e acrescentou: “Não podemos adiar nem mais um dia.” Há duas semanas, o mesmo Pezão se orgulhava da qualidade e da eficiência de suas polícias, reclamando do que seria uma “cobertura cruel.”

Desorientado (há tempo), o governador construiu um caso clássico para demandar uma intervenção ampla, geral e irrestrita no Rio. Nada a ver com o que se armou no Planalto.

Sérgio Cabral (patrono de Pezão) e Jorge Picciani (“capo” do PMDB) não estão na cadeia pelo que fizeram na Segurança. Ambos comandaram a máquina corrupta que arruinou as finanças, o sistema de ensino e a saúde pública do estado. A corrupção e a inépcia policial são apenas o pior aspecto da ruína.

Colocar um general como interventor no aparelho de Segurança, sem mexer no dragão das roubalheiras administrativas, tem tudo para ser um exercício de enxugamento de gelo. Ou algo pior: o prosseguimento de uma rotina na qual as forças policiais invadem bairros pobres e proclamam vitória matando “suspeitos.”

A intervenção proposta por Temer coloca Pezão e seus amigos no mundo de seus sonhos. Num passe de mágica, o problema do Rio sai do Palácio Guanabara (onde mora há décadas) e vai para o colo de um general. Esse semi-interventor assumiria com poderes para combater o crime organizado. O Planalto deve burilar sua retórica, esclarecendo que não se considera crime organizado aquilo que o juiz Marcelo Bretas vem mostrando ao país.

Temer conhece a Constituição e sempre soube que podia decretar a intervenção federal no governo do estado. A Constituição impede que se promulguem emendas constitucionais havendo unidades sob intervenção, mas a reforma da Previdência poderia ser votada na Câmara (se fosse) para ser promulgada no dia da posse do governador, em janeiro de 2019.

Há um cheiro de marquetagem na iniciativa: a reforma seria congelada por causa da intervenção na Segurança do Rio. Patranha. Ela encalhou por falta de votos e a intervenção, podendo ser integral, será light. Temer, que presidiu o PMDB até ser substituído pelo notável Romero Jucá, estancou a sangria, ajudou os correligionários que destruíram o estado e jogou a batata quente no colo de um general.

A saída de Pezão permitiria o desmantelamento do esquema de poder do PMDB antes da eleição de outubro. Sérgio Cabral e Picciani, “capos” dessa máquina, estão trancados, mas ela está viva. Leonardo, filho de Picciani, é o ministro do Esporte de Temer, cujo governo tem dois ex-ministros na cadeia (Geddel Vieira Lima e Henrique Alves). Todos do PMDB, como o ex-governador Moreira Franco, conselheiro especial do presidente.

A intervenção federal permitiria que o Estado do Rio passasse por uma faxina. Até a posse do governador que será eleito em outubro, o interventor poderia desmantelar a teia de ladroagens que arruinou o estado. Quem seria esse interventor? Para que a conversa possa prosseguir, aqui vão dois nomes: Pedro Parente e Armínio Fraga. Os dois estão bem de vida e odiariam a ideia, mas nasceram no Rio e sabem que devem algo à terra. Parente administrou a crise de energia no governo de Fernando Henrique Cardoso e está ressuscitando a Petrobras. Deem-lhe uma caneta e alguns pares de algemas e ele ergue o Rio.

Esse seria um cenário de emergência para uma situação de calamidade. Pode parecer ideia de maluco, mas nem o maior dos doidos poderia imaginar que, em menos de cinco anos, o Rio chegasse onde chegou.

Ciro Gomes
Um pedaço do andar de cima namora a ideia de colocar Geraldo Alckmin no Planalto. Como? Não sabem. Outro pedaço preferia Luciano Huck. Para quê? Não sabiam. Todos estão de acordo num ponto: Lula não pode disputar.

Essas construções têm lógica, mas criam um vácuo no qual só um candidato amplia sua base eleitoral: Ciro Gomes, pronto para encarnar o contra-tudo-o-que-está-aí.

Os Gomes disputam o mando na cidade cearense de Sobral desde 1890. Seu pai foi prefeito, e dois de seus irmãos também. Ciro e Cid governaram o estado. Ele foi ministro de Itamar Franco e de Lula. O mano, de Dilma.

Fernando Henrique Cardoso traçou um breve perfil de Ciro em seus “Diários”:

“Ele é uma personalidade complicada; é precipitado, afirmativo, inteligente, tem coragem, mas é um pouco oportunista nas posições e não vai muito fundo nas questões.”

Faltou mencionar seu fraco pela autocombustão.

Paris 2.0
Cozinha-se a possível nomeação do senador e atual chanceler Aloysio Nunes Ferreira para a embaixada do Brasil em Paris.

Temer faria a mudança ao apagar das luzes de seu governo, retribuindo a lealdade que recebeu do tucano. Uma vez em Paris, quase certamente ele seria mantido pelo novo presidente.

O retorno de Nunes Ferreira a Paris contará uma grande história. Em 1968, ele chegou à França fugindo da polícia. Era o “Mateus”, eventual motorista de Carlos Marighella e participara de dois assaltos. Durante um breve período ele foi o embaixador da Ação Libertadora Nacional na França.

Na sua segunda embaixada, Nunes Ferreira não passará pelas ansiedades de “Mateus”.

Carnaval
É falsa a ideia de que o carnaval acabou.

Temer anunciou a criação do Ministério da Segurança Pública e criou uma ala de 12 ministros para uma comissão de frente emergencial.

O desfile das escolas de samba tratou da realidade, mas o Planalto manipula fantasias.

Praga da ciclovia


Em 2016, quando a ciclovia Tim Maia desabou, matando duas pessoas, o então prefeito do Rio, Eduardo Paes, estava na Grécia. Choveu, a Tim Maia desabou de novo, e o prefeito Marcelo Crivella estava sabe-se lá onde, na Europa, longe da chuva que matou quatro pessoas.

Seria melhor se os doutores se candidatassem a viver no circuito Elizabeth Arden e fossem mandados para as cidades de seu gosto, com tudo pago.

Medo de Crivella

Marcello Crivella derrotou Marcelo Freixo com 1,7 milhão de votos contra 1,2 milhão.

Os votos nulos foram 570 mil, e a abstenção chegou a 1,3 milhão (26,85%).

Muita gente votou em Crivella, anulou o voto ou não foi à urna porque tinha medo de Marcelo Freixo.

Ninguém tinha medo de Crivella. Má ideia.

Sem nexo

O empresário Joesley Batista disse à Polícia Federal que, na sua conversa noturna com Michel Temer, fez um sinal com os dedos indicando que colocaria dinheiro nas suas tratativas com Rodrigo Rocha Loures.

Joesley tinha um gravador escondido, recorrer a um gesto não faria o menor sentido. Seria o único caso em que o grampeador evita o próprio grampo.

Se Joesley tivesse dito isso antes, teria feito a festa do advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que conseguiu defender Temer na Câmara.

Fakebook - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 18/02

Gigante das redes sociais sofre seus primeiros reveses


Depois de anos de crescimento robusto em faturamento e usuários, o Facebook começa a enfrentar os primeiros reveses no que parece ser uma mudança de percepção do público em relação à rede social —ou, na linguagem da empresa criada de início para classificar a beleza das estudantes de Harvard, suas primeiras "descurtidas".

O ataque mais recente veio da Unilever. Na semana que passou, a multinacional ameaçou cortar os anúncios dirigidos ao Facebook e à outra perna do duopólio digital, o Google, se não houver mais transparência e combate às "fake news" e ao conteúdo tóxico.

Seu poder de persuasão vem dos US$ 9 bilhões que gasta em anúncios por ano para promover marcas como Dove, Omo e Hellman's.

Antes dela, a Procter & Gamble, maior anunciante mundial, uniu ação às críticas e cortou US$ 100 milhões em marketing digital em um trimestre de 2017. Segundo a empresa, não houve nenhum impacto nas vendas após a decisão.

No lado dos usuários, o Facebook registrou ao final do ano passado declínio no tempo médio gasto na rede social nos EUA, seu principal mercado: 50 milhões de horas a menos por dia, a primeira queda desde que a empresa foi criada.

A perda se dá principalmente entre os mais jovens, segundo a consultoria eMarketer: 2,8 milhões de pessoas com menos de 25 anos deixaram a rede em 2017; outros 2 milhões devem sair em 2018.

Em Washington e na Europa, executivos têm sido chamados a dar explicações sobre a divulgação de notícias falsas e as práticas monopolistas —de acordo com a mesma consultoria, Facebook e Google detêm 50% da publicidade digital mundial e 60% da americana.

Em sua defesa, o Facebook insiste na tese de que não é uma empresa de mídia e, assim, não tem controle sobre o que veicula —apesar de divulgar conteúdo e cobrar pelos anúncios que o acompanham, a definição clássica de uma empresa de mídia. Tudo o que não quer é estar submetido às mesmas regulações e grau de escrutínio.

Esta Folha já escreveu que gigantes da tecnologia se tornaram também gigantes de mídia. Devem, pois, assumir responsabilidades referentes à segunda condição, prestando contas do que transmitem.

Em janeiro, na tentativa de livrar-se da cobrança crescente, Mark Zuckerberg decidiu que o algoritmo que rege as interações entre usuários seria mudado de modo a privilegiar postagens pessoais, em detrimento das promovidas por marcas e empresas.

A medida deve banir de fato o conteúdo divulgado por veículos de jornalismo profissional e, ainda que indiretamente, facilitar a propagação das "fake news", em geral de muito mais apelo e estridência que as notícias factuais.

De fato, nos últimos quatro meses as interações em páginas que produzem "fake news" subiram 61,6%; nas de jornalismo profissional, houve queda de 17%.

Por tudo isso, a Folha anunciou, em 8 de fevereiro, que deixou de atualizar com notícias sua página no Facebook.

As redes sociais surgiram com a promessa de ser um ambiente de convívio e intercâmbio de ideias e dados, e em boa medida atingem esse objetivo. Mas as empresas por trás delas se tornaram um dos poderes emergentes de nossa era.

Cabe a jornais como a Folha, que cultivam uma atitude crítica, manter olhar vigilante também sobre esse poder.

Temer, o reformista - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 18/02

Bom articulador, mas dono de histórias mal contadas, o presidente teve coragem para aprovar medidas importantes


Pode-se acusar o presidente Michel Temer de tudo, menos de não ter coragem. Fez uma carreira que muitos outros percorreram. Bom articulador, mas dono de histórias mal contadas, que alcançaria o ápice quando presidiu a Câmara. Seria apenas um Henrique Alves com mais estatura se não acabasse virando presidente. A má fama do PMDB ajudou a consolidar sua péssima imagem, que foi potencializada quando sucedeu a Dilma Rousseff. E que desmilinguiu-se depois daquela conversa estranha, para não dizer criminosa, com o empresário Joesley Batista no subsolo do Jaburu.

Temer tem o maior índice de rejeição de um presidente na História da República. E não foi poupado sequer pelo carnaval. No caso da crítica da Paraíso do Tuiuti às reformas, a escola acertou em cheio, Temer é mesmo o principal responsável por elas. Em pouco mais de um ano e meio de mandato, o presidente fez aprovar no Congresso inúmeras leis reformistas encaminhadas por ele ou elaboradas no Parlamento, mas com o seu aval. Pode-se gostar ou não das reformas, mas elas foram feitas. E por Temer. A ver.

Gastos públicos. Lei que estabeleceu limite de gastos públicos. Sem qualquer dúvida, trata-se da mais importante ferramenta para o equilíbrio das contas públicas desde a Lei de Responsabilidade Fiscal. A oposição se opôs, alegando que a lei limitava as ações públicas.

Trabalhista. A reforma trabalhista e a Lei da Terceirização, aprovadas em duas etapas, acabaram com a contribuição sindical, reduziram custos de mão de obra e possibilitaram contratações sem vínculos empregatícios formais. As medidas flexibilizaram a legislação de maneira a ampliar a empregabilidade. O PT diz que elas retiraram direitos do trabalhador.

Taxa de juros. Medida Provisória mudou a taxa de juros que remunera o BNDES da TJLP para TLP. Levou o banco de fomento a operar com as taxas de juros do mercado, o que faz todo o sentido num mercado repleto de crédito bom e barato. Numa economia com inflação baixa, não tem mesmo por que subsidiar crédito. Os empresários chiaram.

Autonomia do Banco Central. Decisão de devolver a autonomia ao Banco Central foi importante para a queda da inflação de um patamar de 11% para 3% ao ano. Teve também como consequência a redução da taxa de juros. Houve resistência até mesmo dentro do BC.

Lei das Estatais. Foi aprovada no Congresso a Lei das Estatais, que cria regras para a indicação de diretores de empresas públicas. O primeiro impacto depois da sua aprovação foi a nomeação de funcionários de carreira para a direção da Caixa para substituir outros, acusados de envolvimento em falcatruas.

Pré-Sal. Lei desobrigou a Petrobras de participar de todos os contratos de exploração dos campos de petróleo do Pré-Sal com no mínimo 30% de participação. A medida destravou os investimentos que estavam parados por absoluta falta de capacidade financeira da estatal de participar de tudo. A oposição diz que o Brasil abriu mão de sua soberania.

Conteúdo local. Lei reduziu a exigência da participação da indústria nacional na produção de equipamentos e produtos em contratos governamentais. O percentual anterior estabelecia uma espécie de reserva de mercado para diversos setores, mas encareceria os produtos ao evitar concorrência externa.

Recuperação fiscal dos estados. Medida Provisória permitiu que estados com alto endividamento e problemas graves de caixa tivessem suspenso por três anos o pagamento de suas dívidas com a União. Provisoriamente, salvou estados como o Rio, que estavam em condição de pré-insolvência.

Ensino médio. Reforma reduziu as matérias obrigatórias de 13 para cinco por ano, possibilitando que o aluno tenha ainda duas cadeiras eletivas, que podem ser cadeiras profissionalizantes, o que ajuda a inserção de jovens no mercado de trabalho. A reforma do ensino médio pode possibilitar também a redução da repetência e da evasão escolar.

Ministério da Segurança. Ao decretar a intervenção na Segurança do Rio e ao mesmo tempo propor a criação de um ministério para cuidar do assunto, Temer levou para dentro do Planalto um problema do qual seus antecessores sempre fugiram. Claro que Segurança é assunto nacional e há décadas deveria estar sob o comando do governo federal.

Reforma da Previdência. Seria o último grande teste para Michel Temer. Se conseguisse aprová-la, sua imagem não melhoria aos olhos dos brasileiros, na verdade poderia até piorar, mas com certeza entraria para história como o senhor das reformas. E como a esta altura o presidente não tem mais nada a perder, ninguém conseguiria fazer tanto, fora Temer.

ECOS DO CARNAVAL

Nepotismo

É impressão minha ou o nepotismo samba nas escolas do Grupo Especial? Vi de tudo nesse desfile. Destaque de carro alegórico sobrinha de presidente; madrinha de bateria casada com diretor; porta-bandeira filha de ex-porta-bandeira. Vão dizer que é assim mesmo, eles vivem em comunidade. Muito bem, só que em algumas comunidades parentes de quem manda têm mais chances que os outros.

Violência e xixi

A violência no Rio durante o carnaval acabou destruindo a imagem de que a cidade é capaz de realizar megaeventos com segurança. As cenas de arrastão nas praias foram mais comentadas que as dos desfiles de escolas. E tem gente que ainda se queixa de quem faz xixi atrás do carro. Fazer xixi na rua, num cantinho, durante os blocos, é regra porque não existe alternativa. Blocos que arrastam centenas de milhares de foliões têm o apoio de 20, 50, 100 banheiros químicos. E são cervejarias que patrocinam os blocos. Como não dá para acabar com os blocos, sugiro fechar os olhos, tapar o nariz e seguir em frente.

Olha a Pauliceia aí, gente!

O turismo no carnaval de São Paulo cresceu 30% do ano passado para este. Mantido este ritmo de crescimento, e considerando a contrapartida carioca, até o final do mandato do prefeito Marcelo Crivella o Rio perde o status de melhor e maior carnaval do Brasil para os desvairados paulistas.

Pudor

Nada contra nem a favor, mas o carnaval do Rio está cada vez mais careta. As meninas da patinação artística da Olimpíada de Inverno deslizaram no gelo mais despidas que as passistas das nossas escolas no asfalto da Sapucaí. O Brasil mudou muito desde a geração de Luma de Oliveira e Monique Evans.

OUTRAS

Dinheiro, para que dinheiro?

Diversos bares e restaurantes em Nova York não aceitam dinheiro em espécie como pagamento de contas. O cliente tem que usar cartão, ou ir comer e beber em outro lugar. Alegam que é mais seguro e higiênico. No Rio, alguns estabelecimentos não recebem cartão, mas aceitam cheque. Cada cidade em sua década.

O coco sumiu

Alguns dos novos quiosques da orla de Ipanema e Leblon não vendem mais coco. Você pode até encontrar água de coco, mas em caixinha. Os quiosques ficaram bacanas, mas não ter coco é demais. Quem não deve se incomodar é Geraldo Alckmin, que, no segundo turno da eleição de 2006, deixou-se fotografar com Garotinho e, depois, bebendo coco em caixinha em Copacabana. Teve menos voto. Não se sabe qual das duas fotos contribuiu mais para o desastre.