Como já afirmei aqui, não endossei as manifestações de protesto contra o governo de Jair Bolsonaro por um único motivo: estamos em tempos em que é preciso manter o distanciamento social. A covid-19 está aí. Trata-se de uma doença grave. Mas sou realista também: as ruas não permaneceriam por muito mais tempo como monopólio da extrema-direita, que nunca respeitou política nenhuma de saúde. Ao contrário: estimulada por Jair Bolsonaro, agarrou-se a um negacionismo estúpido e genocida.
O governo praticamente empurrou os manifestantes para as ruas. Não fosse o desastre já em curso da política de saúde, tomou a decisão adicional de manipular dados sobre as vítimas da doença, o que constitui crimes variados e em diversas frentes: segundo o Código Penal, segundo a Lei 1.079, a do impeachment, e segundo a Lei da Improbidade. Mais: a continuar o que aí está, uma acusação tem de ser formulada contra o presidente e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no Tribunal Penal Internacional. É preciso ainda apelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que o Estado brasileiro seja julgado pela Corte Interamericana.
Tentar esconder dos brasileiros a tragédia que colhe o país constitui uma forma atenuada de genocídio, um crime contra a humanidade e de agressão aos direitos humanos. Ora, dado que havia uma manifestação marcada, mas de adesão incerta em razão dos temores da doença, ninguém conseguia fazer uma aposta sobre o tamanho do evento.
E muitos brasileiros compareceram. Aos milhares. Houve manifestações em pelo menos 20 capitais. E, para a melancolia de Jair Bolsonaro e, parece-me, do general Augusto Heleno, elas foram pacíficas. Houve um pequeno confronto quando alguns poucos, depois de encerrado o protesto, tentaram furar uma barreira da PM em São Paulo. Tratou-se de um evento sem importância. Em Brasília, só não se decretou o bloqueio naval porque o mar fica um tantinho longe. E, no entanto, não aconteceu nada a não ser a defesa da democracia e do Estado de direito.
A incitação de Bolsonaro para que as PMs agissem com rigor contra os que ele chamou de "marginais, viciados e pessoas com costumes que não são os da maioria do povo" caiu no vazio. Os manifestantes foram às ruas pedir democracia. Baderneiros, bandidos e criminosos, que atentam contra a segurança nacional e a Constituição, são os que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo, não é mesmo?
SAUDÁVEL DIVISÃO
Aqui e ali, fala-se que o protesto se deu sob o signo da divisão. Mas que unidade era possível, gente? Convenham: a rigor, em razão do distanciamento, o ideal era que não houvesse nada que o justificasse. Embora impróprio, ressalte-se sempre, havia. E há. Os partidos de oposição não se engajaram no protesto, exceção feita ao PSOL. O PT mudou de ideia na última hora.
O fato é que as instâncias de militância de esquerda, exceção feita ao coletivo Povo Sem Medo e o já citado PSOL, não participaram da convocatória. Também se mantiveram distantes os movimentos suprapartidários em favor da democracia. E, mesmo assim, um ato robusto e pacífico — viu, general Heleno!? — aconteceu.
Imprudente, sim, para a saúde dos próprios manifestantes e de seus familiares caso não se tome cuidado, mas saudável para a democracia. As divisões, num momento como esse, são mais do que naturais: diria até que são necessárias para que grupos plasmem a sua identidade. Os sindicatos também não estavam lá.
E, por isso mesmo, Bolsonaro tem razões para se preocupar ainda mais. Ou por outra: a convocação não foi feita pela, digamos, "esquerda administrativista" — e emprego a expressão sem sentido pejorativo. Por isso mesmo, os que foram às ruas não são militantes profissionais. Nesse particular sentido, há ecos de 2013 e do movimento antirracismo que explodiu nos EUA e se espalha mundo afora.
Mas, à diferença do que se deu naquele ano e em desastres posteriores, não pareceu ser um ato contra a política. Até onde percebi, fez-se a defesa da dita-cuja. Se partidos estivessem ali com suas bandeiras, não seriam hostilizados. Estamos aprendendo de um modo duro, pela pancada, que onde se mata a dita política tradicional brotam a não política e a fascistização.
Aglomerar não é positivo. Mas muitas pessoas que foram aos protestos aglomeradas já estão ou porque trabalham e são usuárias do sistema público de transporte ou porque atuam em setores essenciais.
Que se tomem sempre todos os cuidados contra o terrível coronavírus. Mas sejamos igualmente vigilantes contra um patógeno ainda mais perigoso: o vírus do autoritarismo. A liberdade ainda respira.
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