O digital, essa biblioteca de Alexandria, cobre o desnecessário; e ele, o etc., é o novo essencial
O digital é mais criativo do que a TV por um motivo muito simples: o digital não é escravo da audiência.
Ele forma a audiência. Sentado numa audiência absurda, a TV tem que contentar a todos. Por isso, ela inova menos, arrisca menos.
Já o digital nada de braçada. Ele tem todos os dias as melhores cabeças do mundo gerando gratuitamente conhecimento. Eu estou comprando todos os livros que Bill Gates recomendou para atravessar a pandemia. Eu não preciso mais ouvir sermão feijão com arroz se eu posso ouvir o padre Fábio de Mello ou o dalai-lama ou o que quiser na tela do meu celular.
Eu vi com emoção o lançamento do primeiro foguete tripulado construído pela iniciativa privada no meio de uma crise econômica. Eu também vejo o TikTok revolucionar a linguagem e a estética com coisas geniais e com coisas absurdas e escatológicas.
Eu editei meu Instagram para ficar ligado às fontes de conhecimento do mundo (The New York Times, BBC, The Wall Street Journal). Mas também aos BBBs, à blogueira, aos mequetrefismos, à Nathalia Arcuri, ao Caetano etc. etc. etc.
É uma batalha inglória para a TV. Não acho que os anunciantes e as agências e a mídia em geral entendam o que está acontecendo. Eles acham que é uma revolução do meio. É mais: é uma revolução da mensagem. O mundo está mudando de pauta. Ninguém aguenta só falar de política, de economia e de narrativas dramáticas cansadas e tantas vezes negativistas.
A novela tem as mesmas estórias contadas à exaustão. O digital tem tudo. O romance entre um pé de chuchu e uma couve. No primeiro episódio, tem duas pessoas assistindo. E daqui a pouco tem 40 milhões. Afinal, as Kardashians são um pé de chuchu.
Democracia é pauta também. E é a pauta cauda longa —40 mil, 50 mil, 100 mil pessoas que querem falar de relógio ou masturbação ou latim, em profundidade. Aí você tem à disposição tudo, absolutamente tudo de mais genial que a mente humana pode produzir sobre o tema. Inclusive comercialmente falando. E você compra tudo rapidamente. A experiência de compra é incrível. Uma das melhores coisas no YouTube e no Instagram são os produtos. A criatividade dos produtos, dos serviços e dos apps.
Os CEOs e os CMOs deveriam reservar tempo para se dedicar a uma imersão diária neste mundo que está em nossas mãos. Antigamente, a gente viajava ao exterior para nos atualizar. Hoje, é só clicar de qualquer lugar. Os CEOs e o CMOs precisam achar esse tempo.
A quarentena nos deu tempo. Neste festival de horrores, luto e medo, surgiram coisas boas também. Uma delas é o ser humano ter mais tempo para ser humano. Para rezar, cantar, ler, jogar baralho, dominó, falar bobagem.
O digital tem essa pauta. Que está na literatura de Saramago quando ele fala da avó dele, de Jorge Amado contando a vida da Bahia, de Quintana, Bandeira, Pessoa. A beleza das coisas comezinhas.
Escrevo este texto direto do meu WhatsApp, depois de ver a live do padre Fábio de Melo no meu iPad e tendo de correr para fazer um Zoom de trabalho num domingo.
Tudo isso é uma bênção, inclusive para a TV. Que será ainda mais forçada a sair da sua zona de conforto. A Globo tem melhorado muito, esta Folha está linda, o New York Times se reinventou mostrando que quem decretou o fim do jornal perdeu etc.
Aliás, o etc. é a pauta rica do digital. A publicidade precisa dedicar tempo ao etc. Os anunciantes têm que entender que o futuro está no etc. A felicidade é o etc.
O digital, essa biblioteca de Alexandria, cobre o desnecessário. E ele, meus amigos, o etc., é o novo essencial.
Nizan Guanaes
Empreendedor, criador da N Ideias.
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