terça-feira, junho 02, 2020

O governo das bandas podres - JOEL PINHEIRO DA FONSECA


Folha de S. Paulo - 02/06

Presidente é apoiado por quem prefere o egoísmo desavergonhado ao altruísmo hipócrita



É compreensível o sentimento antissistema que ajudou a eleger Jair Bolsonaro. Desigualdade e pobreza persistentes, setor público ineficiente e abarrotado de privilégios, serviços públicos precários, ricaços que pagam pouco imposto e pobres que pagam muito etc. Isso sem falar na corrupção, cometida pelos mesmos que, em discursos, louvam a democracia, a ética e o bem comum.

Bolsonaro chegou ao poder, ao menos em parte, levado por esse sentimento antissistema, prometendo acabar com “o que aí está”, tirar o poder das elites (econômica, política, cultural etc.) que se encastelaram e desfrutam de privilégios. Na prática, contudo, governa para as elites. Ou melhor, para uma parcela delas: a parte mais inescrupulosa, para a banda podre que não aceita nenhum limite à sanha acumulativa de dinheiro e poder.

Entre os empresários, o apoio não vem daqueles que buscam adequar suas empresas ao mínimo de boas práticas, ética e sustentabilidade, e sim dos mais ávidos pelo lucro imediato.

Basta comparar a postura de Luiza Trajano, de cooperação com o esforço de distanciamento social ao mesmo tempo em que preserva os empregos de seus funcionários, com a de Luciano Hang, que ao primeiro anúncio de quarentena, gravou vídeo em que ameaçava os empregos de milhares de funcionários.

Na religião, o bolsonarismo não é representado por líderes que buscam com humildade viver sua fé e seu compromisso moral, mas pelos pastores mais estridentes e fanatizadores, sedentos de dízimo e de poder.

No agronegócio, os representantes de um agro tecnológico e sustentável já percebem o buraco em que o Brasil se meteu. Bolsonaro governa para o que há de mais retrógrado no agronegócio, os interesses predatórios que querem matar índio e desmatar a Amazônia para transformar em pasto.

No jornalismo, mesma coisa. Profissionais que buscam objetividade de apuração são hostilizados, ao mesmo tempo em que o presidente recomenda “jornalistas” que não veem problema em distorcer o quanto for necessário para melhor bajulá-lo e garantir sua fama junto aos apoiadores.

Na política, Bolsonaro se aproxima do que há de mais abertamente fisiológico e aproveitador, entregando o FNDE e o Banco do Nordeste às legendas do centrão, numa negociação com zero conteúdo propositivo.

Em todos os casos, a lógica é uma só: o bolsonarismo é a lei do autointeresse acima de qualquer consideração institucional, social, legal ou ética.

Há, e não é de agora, uma hipocrisia no discurso de qualquer elite. Um descompasso entre aquilo que pregam e a maneira como de fato se comportam. Esse descompasso gera indignação. De que adiantam discursos certinhos e polidos, com belos ideais, se a prática é desonesta?

O problema é que, para fazer discurso e prática coincidirem, o bolsonarismo não busca melhorar a prática; ele só abriu mão do discurso.

Assim, a prática piora ainda mais, se tornando ainda mais exploratória. O ambientalismo do sistema era da boca pra fora? Então agora vamos desmatar sem disfarces.

A preocupação com a democracia e com os vulneráveis dos políticos de sempre não casava bem com a política fisiológica de jogo de interesses? Então agora o presidente admite não estar nem aí.

O único aspecto do sistema que querem mudar são os limites que esse sistema interpunha à busca desenfreada de seus interesses.

Ao altruísmo hipócrita, preferem o egoísmo desavergonhado. “Ao menos é autêntico.”

Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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