A censura a Trump e a tolerância a Khamenei é uma contradição letal
Se as empresas não querem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos usuários, também não lhes compete editar
Os Estados Unidos estão em chamas e Donald Trump, com a sua conhecida delinquência política, exortou as forças de segurança a dispararem. O Twitter sinalizou as palavras do presidente como “glorificação da violência”.
Alguns dias antes, o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, escreveu na sua conta de Twitter que Israel era um “tumor cancerígeno” que será “desenraizado” e “destruído”. O Twitter nada fez com essa proclamação genocida.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Se as empresas não querem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos usuários, também não lhes compete editar
Os Estados Unidos estão em chamas e Donald Trump, com a sua conhecida delinquência política, exortou as forças de segurança a dispararem. O Twitter sinalizou as palavras do presidente como “glorificação da violência”.
Alguns dias antes, o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, escreveu na sua conta de Twitter que Israel era um “tumor cancerígeno” que será “desenraizado” e “destruído”. O Twitter nada fez com essa proclamação genocida.
Perante esses dois casos, existem três opções: a) o Twitter agiu bem, censurando Trump mas poupando Khamenei; b) o Twitter agiu mal, porque deveria ter censurado ambos; c) o Twitter agiu mal, porque não se deve censurar ninguém.
Pessoas que escolhem a) não merecem conversa: oscilam entre a desonestidade intelectual e o fanatismo ideológico. Paz às suas almas.
Pessoas que escolhem b) ou c) merecem atenção: é perfeitamente possível defender a intervenção ou a neutralidade das empresas sobre o conteúdo veiculado pelos seus usuários. Mas será possível defender as duas coisas ao mesmo tempo?
O advogado e professor Jess Kosseff afirma que sim no seu espantoso “The Twenty-Six Words that Created the Internet” (Cornell, 313 págs.). O livro é, nas palavras do próprio, uma biografia da famosa Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, que Trump pretende agora abolir.
A primeira parte da seção é conhecida e amplamente glosada: as empresas não serão responsabilizadas por aquilo que os usuários escrevem ou partilham através das plataformas.
Fácil entender por que: se o Twitter fosse criminalmente responsabilizado, ou até corresponsabilizado, pelos milhões de idiotas que escrevem por lá os seus “pensamentos”, não poderia sobreviver.
E, com isso, seria o próprio futuro da internet e da sua capacidade de inovação que estaria posto em causa.
Esse, aliás, foi o entendimento dos pais da Seção 230, em 1996: não era possível tratar as empresas da internet como se elas fossem jornais ou televisões, em que existe filtragem editorial de conteúdos.
Mas Kosseff relembra um pormenor usualmente esquecido: a Seção 230 não se limita a conceder imunidade. Na segunda parte, é acrescentado que as empresas podem exercer essa filtragem editorial
“em boa fé”, corrigindo ou até apagando conteúdos. Não será por isso que serão tratadas como jornais ou televisões.
Por outras palavras: os criadores da Seção 230 —um congressista republicano e outro democrata, por sinal— pretenderam o melhor dos dois mundos. Por um lado, liberdade total para os usuários; por outro, liberdade total para as empresas se comportarem como editorias.
O resultado dessa combinação é a selva em que vivemos. Kosseff, apesar de ser um defensor da seção, não nega que o Twitter e outras plataformas se converteram em esgotos de difamação, de partilha de pornografia infantil e até de recrutamento terrorista.
Mas há um segundo problema, a que o professor Kosseff não presta atenção: a arbitrariedade e até o capricho com que empresas decidem quem tem direito à palavra. A censura a Trump e a tolerância face a Khamenei representa uma contradição letal. Que fazer?
Não tenho a solução mágica. Até porque a minha costela liberal, no sentido clássico da palavra, pode aceitar qualquer uma das partes da seção, embora não as duas ao mesmo tempo. Por uma questão de igualdade perante a lei.
Sim, empresas privadas podem editar o que entendem; quem não gosta, procura alternativas no mercado. Mas, nesse caso, não podem desfrutar de um regime excepcional de imunidade face a outros veículos de informação, como os jornais.
Se, pelo contrário, as empresas não querem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos usuários, também não lhes compete editar esses conteúdos.
Honestamente, vejo mais vantagens nessa última opção para o futuro da internet. O que não significa que as empresas são meras portas de banheiros públicos, onde é possível fazer, escrever ou desenhar as maiores barbaridades sob a capa do anonimato.
A liberdade dos usuários deve ser complementada pela responsabilidade pessoal —ou, melhor dizendo, pela possibilidade de culpar criminalmente quem abusa de um direito para causar dano a terceiros.
E isso só será eficaz, e não apenas uma formalidade que raramente tem consequências penais, se as plataformas forem obrigadas a identificar com rigor quem as usa e abusa.
Salvar a Seção 230 significa responsabilizar os indivíduos.
Pessoas que escolhem a) não merecem conversa: oscilam entre a desonestidade intelectual e o fanatismo ideológico. Paz às suas almas.
Pessoas que escolhem b) ou c) merecem atenção: é perfeitamente possível defender a intervenção ou a neutralidade das empresas sobre o conteúdo veiculado pelos seus usuários. Mas será possível defender as duas coisas ao mesmo tempo?
O advogado e professor Jess Kosseff afirma que sim no seu espantoso “The Twenty-Six Words that Created the Internet” (Cornell, 313 págs.). O livro é, nas palavras do próprio, uma biografia da famosa Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, que Trump pretende agora abolir.
A primeira parte da seção é conhecida e amplamente glosada: as empresas não serão responsabilizadas por aquilo que os usuários escrevem ou partilham através das plataformas.
Fácil entender por que: se o Twitter fosse criminalmente responsabilizado, ou até corresponsabilizado, pelos milhões de idiotas que escrevem por lá os seus “pensamentos”, não poderia sobreviver.
E, com isso, seria o próprio futuro da internet e da sua capacidade de inovação que estaria posto em causa.
Esse, aliás, foi o entendimento dos pais da Seção 230, em 1996: não era possível tratar as empresas da internet como se elas fossem jornais ou televisões, em que existe filtragem editorial de conteúdos.
Mas Kosseff relembra um pormenor usualmente esquecido: a Seção 230 não se limita a conceder imunidade. Na segunda parte, é acrescentado que as empresas podem exercer essa filtragem editorial
“em boa fé”, corrigindo ou até apagando conteúdos. Não será por isso que serão tratadas como jornais ou televisões.
Por outras palavras: os criadores da Seção 230 —um congressista republicano e outro democrata, por sinal— pretenderam o melhor dos dois mundos. Por um lado, liberdade total para os usuários; por outro, liberdade total para as empresas se comportarem como editorias.
O resultado dessa combinação é a selva em que vivemos. Kosseff, apesar de ser um defensor da seção, não nega que o Twitter e outras plataformas se converteram em esgotos de difamação, de partilha de pornografia infantil e até de recrutamento terrorista.
Mas há um segundo problema, a que o professor Kosseff não presta atenção: a arbitrariedade e até o capricho com que empresas decidem quem tem direito à palavra. A censura a Trump e a tolerância face a Khamenei representa uma contradição letal. Que fazer?
Não tenho a solução mágica. Até porque a minha costela liberal, no sentido clássico da palavra, pode aceitar qualquer uma das partes da seção, embora não as duas ao mesmo tempo. Por uma questão de igualdade perante a lei.
Sim, empresas privadas podem editar o que entendem; quem não gosta, procura alternativas no mercado. Mas, nesse caso, não podem desfrutar de um regime excepcional de imunidade face a outros veículos de informação, como os jornais.
Se, pelo contrário, as empresas não querem ser responsabilizadas pelos conteúdos dos usuários, também não lhes compete editar esses conteúdos.
Honestamente, vejo mais vantagens nessa última opção para o futuro da internet. O que não significa que as empresas são meras portas de banheiros públicos, onde é possível fazer, escrever ou desenhar as maiores barbaridades sob a capa do anonimato.
A liberdade dos usuários deve ser complementada pela responsabilidade pessoal —ou, melhor dizendo, pela possibilidade de culpar criminalmente quem abusa de um direito para causar dano a terceiros.
E isso só será eficaz, e não apenas uma formalidade que raramente tem consequências penais, se as plataformas forem obrigadas a identificar com rigor quem as usa e abusa.
Salvar a Seção 230 significa responsabilizar os indivíduos.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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