Valor Econômico - 07/05
No caso do Brasil, é plausível que a deterioração da situação fiscal acabe pressionando as expectativas de inflação
O choque da pandemia da covid-19 tem apresentado grandes desafios aos responsáveis pela política econômica pelo mundo afora. Em linhas gerais, temos assistido um forte movimento de expansão fiscal e, também, monetária. As economias do G-20 terão déficits expressivos e, assim, crescimento significativo da dívida pública - cerca de 15 pontos percentuais do PIB, em média, somente em 2020.
Analogias marciais têm sido utilizadas com frequência nesta crise, e, do lado fiscal, parecem apropriadas: tamanho crescimento sincronizado das dívidas públicas de tantos países remonta aos conflitos mundiais da primeira metade do século passado. Se existem sérios desafios fiscais, as perspectivas para a política monetária também são pouco triviais.
À época da grande crise financeira (GCF) de 2008-9, o endividamento do setor público também cresceu muito: de 65% do PIB em 2007 para 95% em 2010 nos EUA, de 42% para 75% no Reino Unido, de 64% para 82% na Alemanha, por exemplo. Com taxas de juros atingindo o limite nulo, os bancos centrais tiveram que recorrer, também, a medidas de expansão quantitativa que aumentaram consideravelmente seus balanços. Diante desse quadro, muitos analistas começaram a alertar para o risco de elevação da inflação, o que acabou se mostrando um alarme falso. Para ser mais preciso, houve, sim, inflação de preços de ativos, mas não dos preços de bens e serviços.
As razões para a ausência de inflação de preços de bens e serviços, mesmo diante de políticas fiscais e monetárias muito acomodativas, ainda são objeto de estudo. Várias conjecturas têm sido levantadas. Uma é que a inflação estaria sendo contida pela ausência de choques de oferta persistentes. Outras explicações estão relacionadas à hipótese de fraqueza estrutural da demanda privada, não plenamente compensada pela expansão fiscal. Outra refere-se à própria efetividade da condução da política monetária. Nos EUA, o crescimento da produtividade do trabalho pode ter sido tal que compensou os ganhos salariais.
Na Europa, as margens observadas em diversos setores podem ter permitido que as empresas acomodassem elevações de salários sem fazer repasses ao preço final. Outra observação, com a qual simpatizo, é que a inflação baixa tem se tornado mais persistente por causa do seu efeito sobre as expectativas de inflação, em um processo que se retroalimenta.
O mundo, especialmente o mundo desenvolvido, teria se deslocado para um ambiente inflacionário mais baixo. Nesse novo contexto, a piora da trajetória do endividamento do setor público e o risco, longínquo, de eventual monetização da dívida, com as devidas consequências inflacionárias, estariam sendo compensados pelos fatores acima citados. A tensão entre a deterioração fiscal e o ambiente macroeconômico de curto prazo teria sido resolvida, pelo menos por ora, a favor do segundo.
Se esse predomínio dos fatores macroeconômicos de curto prazo e da persistência da inflação baixa tem caracterizado o período pós-GCF nas economias maduras, o mesmo ainda não pode ser dito, de forma conclusiva, sobre as economias emergentes. Isto porque, em economias maduras, com classificação de risco favorável e histórico de inflação baixa, a deterioração fiscal tem impacto limitado sobre outras variáveis-chave, como a taxa de câmbio e, assim, sobre as perspectivas inflacionárias.
No caso das economias emergentes, notadamente aquelas com histórico inflacionário ruim, como é o caso do Brasil, é plausível que a deterioração da situação fiscal acabe pressionando as expectativas de inflação. Em certa classe de modelos macroeconômicos, a simples piora da trajetória fiscal esperada já pode induzir aumento da inflação (por meio da perspectiva de monetização da dívida).
Na prática, as expectativas de inflação no horizonte de 1 ou 2 anos tendem a ser altamente correlacionadas com a trajetória inflacionária recente. Em geral, o processo de desancoragem de expectativas passa por um choque, que eleva a inflação corrente. Diante do aumento da inflação corrente, os analistas e investidores têm uma decisão a fazer: acreditam ou não que o banco central (BC) estará disposto e será capaz de fazer o necessário para trazer a inflação de volta à trajetória das metas? Se existir a visão de que o BC pode sofrer ingerência política, então a resposta tende a ser negativa, e as expectativas de inflação sobem.
Se, mesmo na ausência de tais ingerências ou expectativa das mesmas, que é o quadro que geralmente observamos no Brasil (certamente no momento atual), existirem dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida, o espectro da dominância fiscal pode levar os agentes à conclusão de que o BC não terá como subir a taxa de juros sem incorrer no risco de desestabilizar ainda mais a trajetória da dívida pública. No limite, quando as contas públicas estão suficientemente debilitadas, uma alta da taxa de juros pode até, em tese, ser contraproducente. Em tal ambiente, independente da intenção e compromisso anti-inflacionário da autoridade monetária, o risco de perder a âncora das expectativas é real.
O Brasil vem experimentando, desde 2016, um novo ambiente, com taxas de juros em patamares internacionais, taxa de câmbio menos apreciada, e maior diversificação dos investimentos, além dos títulos públicos, sem prejuízo algum do controle inflacionário. Tal configuração pode se mostrar efêmera se a expansão fiscal, evidentemente necessária em 2020, se estender indefinidamente no futuro. E a política monetária deve levar essa possibilidade em consideração.
Mario Mesquita é economista-chefe do Itaú Unibanco
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