Mais uma vez, o fisiologismo, o populismo e o corporativismo venceram, com apoio do governo que prometeu abandonar a velha política
Nociva em tempos normais, a maneira despudorada com que parcela não desprezível dos congressistas costuma decidir sobre o destino do dinheiro público pode ser ruinosa para o País no momento em que os recursos humanos, materiais e financeiros deveriam ser canalizados prioritariamente para salvar vidas ameaçadas pela covid-19. Sem nenhum pejo, porém, e desconectada da grave realidade dos brasileiros, essa parcela – agora amiga íntima do governo do presidente Jair Bolsonaro e sua parceira em transações com recursos orçamentários – agiu decididamente para que a Câmara dos Deputados desfigurasse o projeto de auxílio financeiro para Estados e municípios e nele incluísse benefícios para várias categorias de servidores.
A versão aprovada pelo Senado já favorecia algumas categorias especiais. Era o máximo que se podia conceder para estimular o trabalho dos profissionais que cuidam de vítimas da covid-19 sem comprometer a necessária austeridade financeira. Mas, com a ativa participação do líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), e do líder do PP, deputado Arthur Lira (PP-AL), a lista foi ampliada para atender a interesses eleitorais específicos de um determinado grupo político.
Mais uma vez, a perniciosa combinação de fisiologismo, populismo e corporativismo venceu, desta vez com o apoio decisivo, muito mais do que simples conivência, do governo cujo chefe se elegeu prometendo abandonar a velha política do toma lá dá cá. Coincidência ou não, muito provavelmente não, no dia seguinte à decisão da Câmara, o Diário Oficial da União publicou a nomeação de Fernando Marcondes de Araújo Leão para dirigir o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), um dos cargos mais cobiçados por parlamentares do Nordeste por causa das dimensões do orçamento desse órgão federal e da abrangência de sua atuação.
É a primeira nomeação para um cargo dessa importância como consequência da aliança que o presidente Jair Bolsonaro fechou com o grupo de deputados que, em lugar de princípios e programas, têm prioritariamente interesses políticos e eleitorais a serem atendidos pelo governo federal. Não por acaso o nomeado foi indicado pelo PP do deputado Arthur Lira. Esse partido vem tendo papel importante na aliança com a qual Bolsonaro procura assegurar o mínimo de votos no Congresso para não ver seu cargo sob risco. Esse mesmo grupo sinistro tenta agora adonar-se da estrutura do Ministério da Agricultura, ainda nas boas mãos de Tereza Cristina.
Ao desfigurar o projeto de ajuda financeira aos Estados e municípios, a decisão da Câmara praticamente demole uma das condições essenciais negociadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O congelamento de vencimentos dos servidores, salvadas pouquíssimas exceções, era a contrapartida para a ajuda aos Estados e municípios no combate à pandemia. Guedes foi derrotado com a colaboração de integrantes da base do governo.
Também Alcolumbre perdeu, pois a Câmara alterou os critérios para a repartição do auxílio federal, estimado em R$ 60 bilhões, e reduziu a desproporcional participação do Amapá, Estado que o senador representa, no bolo. Como foi alterado no mérito pela Câmara, o texto voltará para o Senado.
A lista aprovada pelo Senado de carreiras de servidores que ficariam fora do congelamento de vencimentos incluía militares das Forças Armadas, servidores dos serviços de segurança pública dos Estados e profissionais de saúde. Emenda apresentada na Câmara pelos líderes do governo e do PP estendeu o benefício para as Polícias Federal e Rodoviária Federal, agentes penitenciários, técnicos e peritos criminais, agentes socioeducativos, garis e assistentes sociais. Até policiais legislativos, que atuam na Câmara e no Senado, saíram ganhando. Outro destaque preserva os aumentos dos professores. Os deputados retiraram do projeto a restrição de que os aumentos salariais seriam autorizados somente para carreiras diretamente envolvidas no combate ao coronavírus.
Enquanto isso, estima-se que praticamente três quartos (ou 75%) dos assalariados do setor privado terão sua remuneração cortada.
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