O deus alheio é falso, sabemos há séculos. Assim como meu país é o melhor do mundo unicamente porque eu nasci nele, minha fé é a correta, a única que segue as escrituras verdadeiras, a que salva etc. Todos conhecem a ladainha incessante que inverte uma premissa religiosa, não se trata mais de um “povo escolhido”, todavia de um “deus escolhido pelo meu narciso”. Ele é o eleito por mim porque é o mais adequado ao meu universo. Ele se adapta ao meu cercadinho e meu comportamento molda a forma do divino.
Se sou conservador, meu deus também o é e eu ainda digo que sou por causa dele. Se abomino sexo, meu deus diz o que eu penso de tal forma que criador vira criatura. Moldamos deus a nossa imagem e semelhança, por isso usei e usarei deus com letra minúscula o tempo todo, porque reconheço aqui a idolatria tradicional de sacralizar um objeto.
Não, minha querida leitora e meu estimado leitor. Não me refiro aos infiéis daqui e dali. Começo o texto pensando em mim. Há quase dez anos, estive pela enésima vez na Índia. Talvez pelo calor ou pelo meu horror a andar descalço, ingressei irritado em um templo dedicado a Shiva. Meu guia era shivaíta, assim como sua família. Era uma tradição religiosa de séculos entre eles. Diante do altar com a divina esposa Parvati, o simpático indiano-hindu foi tomado de forte emoção, similar à que presenciei em Fátima ou Lourdes com católicos. Já disse, talvez o calor, talvez o incômodo eterno que tenho em pisar em pedras descalço, talvez apenas minha ignorância... Na saída, de repente, fiz a ele uma pergunta profundamente infeliz: “Você acha, realmente, que existe um ser chamado Shiva?”.
A indagação está na minha memória como uma das mais idiotas da minha vida. Mais do que isso: foi invasiva e preconceituosa com a crença do meu guia. Eu o estava pagando e isso conferia mais autoritarismo ao meu questionamento. Ele não tinha a liberdade de me mandar pastar ou pedir que a divindade me punisse. Educado e mais sábio do que eu, respondeu que sim e que isso fazia parte de uma tradição antiga. Só então percebi que o calor havia evaporado o pouco bom senso que eu tinha. Passei o resto da viagem me desculpando com nosso orientador local.
Não sou religioso. Não compartilho das crenças da maioria. Porém, continuei ocidental e cristão. Pior, incorporei o pior do etnocentrismo monoteísta e deixei de lado o melhor que seria a compaixão sincera por qualquer ser humano. Jamais perguntei a alguém que estava de joelhos em Fátima (e fui tantas vezes lá) se aquela pessoa realmente acreditava naquilo tudo. Visitei igrejas no mundo todo e nunca me ocorreu indagar a um padre durante a consagração: “Escuta, moço, você acha mesmo que isto é algo além de farinha?”. Por quê? Porque, mesmo não sendo religioso, aquela era minha cultura. Bastou eu ser separado da matriz europeia e meu pequeno monstrinho etnocêntrico e fascista veio à tona. Não há problema com o que estou acostumado, porém, a fé do outro é sempre tratada como folclórica.
O outro, essa profunda categoria antropológica, é um desafio. Mais grave: venho dando aulas sobre alteridade (o estudo do outro) há décadas. Ensinei a centenas de alunos a teoria. Eduquei muitos sobre os riscos de eu me considerar como referência do universo e julgar, com meus valores, culturas distintas. Trabalhei relativismo em autores variados. Critiquei eurocentrismo e dogmas. Os alunos me ouviram, eu não me escutei e fiz aquela pergunta abominável.
Eu estou certo porque é o que acredito, você está errado porque não segue o que eu professo. Você é exótico, estranho, infantil até. Eu sou o iluminado e, como um novo Moisés, o verdadeiro deus, o meu, claro, revelou-me no sagrado monte Sinai as regras das minhas leis. Moisés retirou o calçado para estar na presença divina e ficou abalado com a proximidade do sagrado. Eu, pelo contrário, alego que os outros precisam calçar as sandálias da humildade. Se não pensarem como eu, são arrogantes e cegos. Sou o novo doutor da lei, o fariseu clássico, o que grita no Templo que foi salvo e que é distinto do samaritano impuro. Claro! Passo pelo humano ferido na beira da estrada e sigo cantando louvores. Ressalto: a idiotice da fé cega é tão constrangedora como a arrogância do ateu que humilha alguém porque Shiva é mais estranho do que um crucifixo.
Vi meu amigo Dráuzio Varella emocionado narrando casos de amor e de solidão de pessoas trans na cadeia. Vi outros querendo apedrejar porque “ela pecou e a Lei manda matar”. Volto à parábola de Lucas. Ali estava o samaritano. Dr. Dráuzio é ateu e socorreu o próximo. Eu nada faço de bom e, em meio a uma viagem de luxo, aproveito para perguntar babaquices a uma pessoa que me serve. A dignidade não está no ateísmo e a dignidade não está no modelo de deus seguido pelas pessoas. Seu deus pode pedir que você respeite a sexta, descanse no sábado ou santifique o domingo. Seu deus pode pedir que você pague dízimos ou trízimos, que acenda velas ou cante. Seu deus é seu.
A única verdade, a única redenção possível para os homens e seus muitos deuses, assim como para os ateus, é a capacidade de ver o outro. Se você e seu deus acham que qualquer ser humano é inferior, ou indigno, ou desviado, ou doente moralmente, você e seu deus são babacas absolutos e se merecem. Descobrir o outro é um desafio para ateus, agnósticos e crentes. Creia ou não creia, apenas não seja idiota. Viva o amor, independentemente de quais deuses ocupam o altar da sua vaidade. Boa semana aos samaritanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário