Faz-se ginástica retórica para usar a Suécia como exemplo
Já falei neste espaço da Lei de Parkinson, segundo a qual o objetivo das burocracias estatais é aumentar seus ganhos e privilégios na razão inversa da arrecadação e do serviço a ser executado. Citei também a Lei de Godwin, que estabelece ser inevitável em longas discussões nas redes sociais alguém acusar o outro de ser a favor do Holocausto ou de estar tentando recriar o nazismo. Essas duas leis permanecem atuantes. Basta passar um tempo no Twitter para trombar logo com algum usuário apontando sinais evidentes de hitlerismo renitente em um antagonista. A insistência dos grupos organizadores de servidores pressionando o Congresso por aumentos de vencimentos em plena pandemia, quando a previsão é de queda dramática do PIB e da arrecadação de impostos, confirma a validade atual da Lei de Parkinson.
Neste artigo vou falar de uma outra regra também aparentemente universal, a “Lei de Dawkins para a Conservação da Dificuldade”, segundo a qual “o obscurantismo em qualquer assunto acadêmico tende a se expandir até preencher o vácuo de sua simplicidade intrínseca”. Essa lei recebeu o nome de seu criador, o cientista e escritor britânico Richard Dawkins. Ela atua com força total nesses tempos obscurantistas em que se gastam enormes quantidades de energia não para esclarecer, mas para complicar questões vitais dentro e fora das universidades.
Claro que há temas da Física intrinsecamente complexos e que não devem ser simplificados demais com intuito de serem entendidos por qualquer pessoa. As equações de campo de Karl Schwarzschild que deram força para a Teoria da Relatividade Geral de Einstein e ela própria são exemplos de assuntos acadêmicos impenetráveis para o leigo que não detém as ferramentas da alta matemática necessárias para enxergar seus méritos e eventuais falhas.
O que Dawkins critica com sua lei é coisa bem diferente. Ele critica o que o imunologista Peter Medawar, britânico, nascido em Petrópolis, no Rio de Janeiro, onde seus pais passaram parte da vida, chamou de “inveja da Física”. Medawar é considerado o Pai dos Transplantes por suas pesquisas sobre como evitar a rejeição de órgãos. Em que consiste a inveja da Física? Segundo Medawar, essa inveja pode ser identificada em autores que querem ser considerados profundos, mesmo quando tratam de questões bastante simples e superficiais. Ou seja, a Lei de Dawkins tem aplicação imediata contra a atuação dos impostores, dos campeões da propagação de informações falsas, incompletas ou distorcidas com o objetivo de promover causas de todos os matizes ideológicos.
Tome-se o exemplo excruciante do isolamento. Difícil imaginar uma medida mais extrema, punitiva e cruel, especialmente para quem sobrevive do que ganha no dia a dia, do que a obrigação de não sair de casa. Mas com quase cinco meses de epidemia de coronavírus, a realidade é a de que, com exceção da Suécia, todos os países fortemente atingidos, cerdo ou tarde, apelaram para que seus habitantes ficassem em casa. Beira o obscurantismo a ginástica retórica que se faz para usar a Suécia como exemplo de combate bem-sucedido ao coronavírus sem exigir sacrifícios da população.
Aplicando-se a Lei de Dawkins, a verdade que aparece é a de que a Suécia não é um exemplo de sucesso. A Suécia fracassou. Até quinta-feira passada, a Covid-19 havia matado na Suécia 349 pacientes por milhão de habitantes. Isso significa que, como proporção da população total morreram na Suécia 5,4 mais doentes de Covid-19 do que no Brasil — que tinha no mesmo dia 64 mortos por milhão de habitantes.
Com exemplos equivocados como esse da Suécia é que não se pode, no Brasil ou em qualquer outro lugar, planejar e executar algum movimento de retomada da atividade econômica. A Lei de Dawkins sugere que se deixarmos o obscurantismo crescer e ocupar o vácuo deixado pelo falseamento da “simplicidade intrínseca” da realidade, o sacrifício cobrado dos brasileiros pela pandemia, especialmente dos mais pobres, será ainda maior.
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