sábado, maio 16, 2020

A pílula da vez - MERVAL PEREIRA

O Globo - 16/05

Um governo voluntarista que coloca em risco a população que preside e tenta fugir do controle das instituições democráticas


A cloroquina é a pílula do câncer da vez de Bolsonaro. A obsessão do presidente Bolsonaro com a cloroquina, que derrubou o ministro da Saúde Nelson Teich e já colocara o ministro anterior, Luiz Henrique Mandetta na linha de tiro, pode ser explicada pela busca de um remédio milagroso que permita dar a sensação de segurança aos cidadãos para abrir a economia. Assim como fez campanha pela pílula do câncer e, ao ser perguntado se acreditava mesmo na sua eficácia, respondeu: ” Sou Capitão do Exército. Minha especialidade é matar, não é curar ninguém. Se cura, não sei. Mas vamos dar uma chance àquele que está com dia marcado para morrer”.

A Medida Provisória que ele editou esta semana pode ser considerada a “excludente de ilicitude” da Covid-19. Aquele instrumento, que foi rejeitado pelo Congresso, dizia que o agente público não pode ser culpado quando age sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Na Medida Provisória relacionada à Covid-19, os agentes públicos “somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de combate ao coronavírus (…)".

O espírito é o mesmo, isentar de culpa agentes públicos que se excederem no cumprimento do dever, até mesmo provocando mortes, como no caso da cloroquina. Inclusive o próprio presidente.

No mundo, poucos são os que defendem a cloroquina com tanta obstinação quanto Bolsonaro, que também nesse ponto se equivale a Maduro, da Venezuela. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, continua nessa defesa, depois que estudos acadêmicos diversos demonstraram que a cloroquina não apenas provoca danos colaterais variados, que podem ser fatais, como não tem se mostrado eficaz no combate ao Covid-19.

Falou-se até que Trump seria sócio da farmacêutica francesa Sanofi, que produz a cloroquina, mas, mesmo existindo, essa participação na empresa é tão insignificante que não parece razão para sustentar o apoio. O dono da farmacêutica, sim, é um dos grandes financiadores eleitorais de Trump.

Já com Bolsonaro, embora haja muitos boatos nesse sentido, não há evidências de interesses comerciais para sua insistência, mas apenas o caráter autoritário de um presidente que precisa de uma desculpa para agir na contramão do mundo, encerrando o distanciamento social horizontal para implantar o vertical, protegendo apenas os grupos de risco. É um interesse eleitoreiro claro.

Há também um erro de decisão que fez com que o Brasil tenha comprado da Índia 530 quilos de insumos para a fabricação de cloroquina. Também o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército aumentou 80 vezes sua produção, passando de 250.000 comprimidos a cada 2 anos para combate de doenças como malária e lúpus para 1,2 milhões em um mês e meio.

O maior perigo dessa segunda demissão no ministério da Saúde, no momento em que o Brasil se aproxima dos 15 mil mortos pela pandemia da Covid-19, e ameaça chegar a mil mortos por dia, é a irresponsabilidade de Bolsonaro, que acha que, por ter sido eleito, tem o direito de decidir de acordo com sua vontade, e não com base científica.

Um governo voluntarista que coloca em risco a população que preside e tenta fugir do controle das instituições democráticas que dão os limites ao presidente da República. Esse voluntarismo está presente, por exemplo, nesse caso da reunião ministerial que é a prova material que pode definir a denúncia contra ele por interferência indevida na Polícia Federal.

Bolsonaro já disse que poderia ter destruído o vídeo, e não poderia. Estaria cometendo um crime, pois o vídeo é um documento do governo brasileiro que, se quisesse destruí-lo, teria que preencher diversos requerimentos e protocolos e talvez nem pudesse fazê-lo se a decisão fosse tomada apenas com base na sua vontade. Pior ainda se a intenção fosse obstruir a Justiça.

E é essa mesma obsessão autoritária que faz com que considere normal querer que a Polícia Federal lhe repasse informações “ouvidas atrás da porta”. O exemplo que deu, de pais ouvindo atrás da porta para saber o que os filhos estão fazendo, mostra que o de que ele sente falta mesmo é de informações colhidas fora das normas legais.

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