"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre".
Essa foi a reação do presidente Jair Bolsonaro nesta terça ao ser informado do número de mortes por Covid-19.
Como viemos parar nesse buraco moral? O fato é que estamos nele.
O Brasil registrou nesta terça um recorde de mortes em razão da doença: 474. Já são 5.017 os mortos contabilizados pelo Ministério da Saúde, que reconhece uma lista de apenas 1.156 óbitos em investigação. A subnotificação, no entanto, é brutal e autodemonstrável, por exemplo, no caos que enfrentam os sistemas de saúde e funerário de cidades como Manaus e Belém. Na capital fluminense não há mais leitos disponíveis. Belo Horizonte mandou abrir 1.900 covas. Estão começando a se popularizar os contêineres frigoríficos para estocar carne humana, essa carne brasileira que tem sido tão barateada.
Assistimos a cenas inéditas, com caixões sendo empilhados em covas coletivas, a exemplo do que se vê na capital do Amazonas. O país da "gripezinha", como Bolsonaro chamou a doença, ocupa o 9º lugar no ranking de mortos — já superou a China (4.512) nesse particular — e o 14º em número de contaminações: 71.886. E, no entanto, as autoridades federais, entre perplexas e raivosas, não conseguem nem mesmo se solidarizar com as famílias atingidas.
Além da Covid-19 e das outras moléstias que já matavam no país, há uma doença ainda mais grave que anda por aí a nos assombrar e que, esta sim, pode nos inviabilizar porque nada de útil sairá de uma vivência assim: a impiedade, a falta de empatia, o desrespeito com a vida, o alheamento, a alienação. Já vimos grandes correntes de solidariedade se formar no país em momentos de tragédia. Hoje, no entanto, assistimos a uma espécie de suspensão coletiva do juízo e do padrão mínimo de decência.
É claro que não é um sentimento generalizado. Talvez nem seja majoritário. Mas é escandalosamente perceptível para que não seja apontado. Assim como os pulmões do doente de Covid-19 assumem, nos exames de imagem, o aspecto de um vidro fosco, parece que os espíritos também estão se deixando ofuscar pela estupidez, pelo dane-se, pelo "quer que eu faça o quê?"
No caso da indagação de Bolsonaro, a resposta é bastante simples. Bastaria que não tivesse ideologizado a questão, insistindo numa insana e homicida exortação a que as pessoas saíssem do isolamento social. Bastaria que não tentasse convencê-las de que deveriam levar uma rotina normal em nome da economia porque, afinal, "todo mundo vai morrer um dia". Bastaria, na condição de chefe de Estado, a expressão de alguma solidariedade, de algum compadecimento genuíno, de alguma, enfim, empatia.
Mas o presidente que temos parece incapaz de se colocar um pouco que seja no lugar do outro que sofre. Por isso justificou e defendeu a tortura em reiteradas declarações. Para o torturador ou para quem faz a apologia de tal prática, o que é o torturado? É uma "coisa" da qual se deve arrancar uma confissão. Assim como os corpos empilhados em Manaus. É claro que Bolsonaro está também fazendo história e escrevendo a sua biografia. As vítimas potenciais do caos, no entanto, não têm como esperar pelo ajuste de contas.
Os sistemas de saúde de todos os grandes centros estão sob pressão. Não era uma gripezinha. A cada dia, descobrimos que sabemos ainda pouco sobre a doença. Todas as teses de Bolsonaro estavam erradas. Só não nos tornamos um vale de desgraçados de dimensões continentais porque a sua pregação não triunfou — embora ele certamente tenha prejudicado em parte a eficácia do isolamento horizontal. A doença atrapalhou os seus planos. E, por isso, parece que ele não perdoa os doentes.
Na entrevista desta terça, o ministro Nelson Teich, com o aspecto de burocrata de funerária de filme B, afirmou, como um autômato, que as mortes cresceram, contrariando sua expectativa, e tratou do assunto, ele também, com a compaixão que a gente sente por um bloco de gelo. Ninguém espera certamente de um médico que se deixe tomar de emoção quando está examinando um paciente ou fazendo uma cirurgia. Tudo o que esperamos dele é racionalidade, técnica, frieza, apego à ciência, ao saber firmado, à memória científica de casos afins etc. Não é fácil. Por isso mesmo, é preciso ter um espírito especialmente talhado para a função.
Ocorre que, além de médico, Teich é agora um homem público, que lida com a saúde e o destino de milhões de pessoas. Seu despreparo para exercer a função — que não é a de estatístico, ainda que ele fosse bom nisso, mas não parece ser — é de tal sorte evidente que chego quase a me compadecer do da sua falta de identificação com a condição humana. Nem se trata de acusá-lo de desprezo olímpico, o que se exerceria com retórica agressiva. Não! Acho que devemos temer o seu tédio diante dos corpos empilhados.
Todos terão, fiquem certos, suas respectivas histórias contadas.
Há, sim, uma guerra contra o vírus. E haveremos de identificar os generais da morte.
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