Quem chegar vivo ao final da pestilência poderá testemunhar a morte da austeridade econômica
Falar do quê?, eis a questão. De coisas sérias, consequentes, duras, quiçá úteis e até edificantes ou adoçar a boca do leitor com o mel de fait divers escapistas? Remoer a deprimente arenga sanitária martelada ininterruptamente pela TV ou buscar um ponto de fuga lenitivo e psicologicamente profilático?
Sintetizando a questão em dois filmes sobre enfrentamento ao nazismo: vamos de Kanal ou de A Noviça Rebelde?
(Kanal, informo a leigos e desmemoriados, é um filme tenebroso do polonês Andrzej Wajda, sobre a resistência de seus patrícios à invasão nazista. É quase todo ambientado nos esgotos de Varsóvia. Já a fuga da família Trapp, como até as vacas do Tirol sabem, deu-se através das verdejantes colinas de Salzburgo.)
Como as colinas pós-pandêmicas tão cedo não irão revivescer ao som da música, kanalizemos nossa pauta. Ao esgoto, moçada.
Quem chegar vivo ao final da pestilência em curso poderá testemunhar algo que até recentemente parecia ainda um tanto longínquo, embora visível no horizonte: a morte da agenda de austeridade econômica, a vítima mais alvissareira do novo coronavírus.
Mas não se empolguem. A dívida pública de todos os países deverá atingir níveis assustadores, as economias mais frágeis, esse eterno grupo de risco, verão suas desigualdades aumentarem.
Pelos depoimentos que tenho lido, já é quase consenso que aquele mundo que até algumas semanas atrás desfrutávamos, com menos e mais dificuldades, algumas superáveis, deixou de existir. Desapareceu. E não mais voltará.
A nostalgia encurtou seus prazos; saudade não tem mais idade. Neste primeiro ano da Era Coronavírus, Ano 1 d.c., até crianças já suspiram pelo carnaval de 2020. Ou pelo Natal de 2019.
Sinto-me como se tivesse mudado para outro planeta, cujos habitantes não se interagem, não se confraternizam, não se tocam, onde todos desconfiam e se repelem mutuamente. Até quando seremos (ou nos sentiremos) todos leprosos?
Vejo fotos e filmes em que as pessoas conversam, cumprimentam-se, abraçam-se e dividem a mesma mesa ou o mesmo sofá, e, do alto (no meu caso, nove andares) da minha também pobre experiência quarentenal, me pergunto: qual mundo nos é mais estranho, este que estamos vivenciando ou aquele que, para o nosso bem, teremos de esquecer?
Nunca pensei que um dia fosse experimentar na vida real o que tão marcadamente me intrigou ao ver, em criança, O Dia em que a Terra Parou, a versão original, dirigida por Robert Wise. Como seria se nosso planeta fosse, como no filme, inteiramente paralisado por uma força superior, no caso, a mente de um ET benigno, chamado Klaatu? Todos os aparelhos elétricos são súbita e misteriosamente desligados, exceto os de hospitais e aviões em voo, resultando num breve mas incisivo apagão global, para que os terráqueos aprendam a viver em harmonia, em paz permanente. Não aprendemos.
A espaçonave que até nós trazia Klaatu e seu fiel robô Gort aterrissava em Washington, e como em 1951 a Guerra Fria já estava amornando, tomaram-na por um disco voador soviético, despachado do Kremlin para destruir a América e o resto do Ocidente. As xenófobas imputações feitas à China, nas últimas semanas, por conta do novo coronavírus, aqui e lá fora, seguiram portanto um padrão de idiotia paranoica e anticomunismo fuleiro coberto de mofo.
A covid-19 é um Klaatu em forma de microrganismo; quem sabe não iremos tirar proveitosas lições de sua disseminação. Já aprendemos a revalorizar a solidariedade, o papel da imprensa e o heroico SUS; pouca coisa não foi. Mas ainda é pouco.
Das mil e uma ideias implementadas para amenizar o claustro pandêmico e desentediar a mídia impressa, uma das mais fagueiras foi a série Janelas Para o Mundo que um consórcio de jornais europeus, encabeçado pelo alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung e o italiano Corriere della Sera, bolou com a participação de escritores e filósofos europeus. Cada convidado conta o que tem visto de sua janela ou nela tem corvejado sobre a vida, os últimos acontecimentos e o que mais lhe aprouver.
Residente em Milão, Antonio Scurati, o festejado autor da mais recente biografia de Mussolini, M, o Filho do Século, testemunha de sua finestra o que ele define como o fim de uma era, “a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da humanidade”. É com tristeza e uma pitada de ironia que ele acompanha e narra a transformação da cidade mais rica, privilegiada e evoluída da Itália, polo mundial da moda e do design, em capital mundial da contaminação virótica.
Pouco importa que Nova York já a tenha ultrapassado nesse ranking sinistro. Scurati não mora em Manhattan, é milanês adotivo. A Milão que ele descreve – com seus ricaços fazendo fila para comprar um pão ordinário na mercearia de imigrantes que antes olhavam com desprezo, mas hoje é a única em funcionamento nas vizinhanças – me pareceu a que vimos em A Noite, de Antonioni, metamorfoseando-se na proletária periferia que De Sica retratou em Milagre em Milão.
A um metro de distância um dos outros, “ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados”, os ricaços na fila do pão formam uma felliniana farândola de mascarados. Suas improvisadas máscaras em nada lembram as dos carnavais venezianos. São precárias gazes meio desfiadas, que pendem de rostos transtornados pela “melancolia mole dos restos de uma era acabada”, arremata Scurati.
Da minha janela eu ainda vejo o Corcovado e o Redentor, que lindo. É um consolo. Boa sorte a todos.
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