Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal
No início da década, a Grécia se viu obrigada a fazer um extraordinário ajuste fiscal. Tendo sido beneficiada pela condição de membro da União Europeia, o que lhe permitiu financiar sua dívida a juros baixos, a Grécia tinha sido fiscalmente irresponsável. Com a crise financeira de 2008, a realidade bateu à porta. Os mercados, sempre dispostos a absorver mais dívida quando a maré está alta, com o refluxo, secaram. O aumento do prêmio de risco cobrado pelos bancos tornou a dívida, além de muito alta, também muito onerosa.
Yanis Varoufakis, à época um professor visitante na Universidade do Texas-Austin, foi o primeiro a afirmar o que qualquer pessoa com uma noção básica de aritmética poderia constatar: a dívida grega era impagável. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, a Troica, preocupados com o impacto sobre o sistema bancário, decidiram entender que não, que a Grécia deveria fazer um drástico ajuste fiscal e refinanciar a dívida. O ajuste foi feito. O déficit, de mais de 10% do PIB em 2010, foi revertido. Em 2017 a Grécia, a Alemanha, a Dinamarca e a Suécia, eram os únicos países da União Europeia com superávit fiscal.
O resultado pode ser avaliado por alguns números. O desemprego, que já era alto antes do início do ajuste, quase de 10%, três anos depois chegou a 28% da força de trabalho e a mais de 60% entre os jovens. No ano passado o desemprego ainda estava perto de 20% e o PIB tinha caído mais de 30% em relação a 2010. A dívida, que era equivalente a 150% do PIB em 2010, depois de quase uma década de ajuste, chegou a 180% do PIB. Mas os números, por mais impressionantes que sejam, não podem exprimir a dimensão da verdadeira tragédia que se abateu sobre a Grécia. O país foi destroçado.
Em 2015, depois de três anos de ajuste fiscal, a população exprimiu sua rejeição ao estrangulamento econômico a que o país estava sendo submetido. Um novo partido de esquerda, o Syriza e seu jovem lider, Alex Tsipras, venceram as eleições. Varoufakis foi convocado para ser o ministro da fazenda e renegociar a dívida. Condicionou a sua aceitação a ser eleito para o congresso. Sem jamais ter exercido qualquer cargo público, em menos de três meses de campanha, foi eleito o deputado mais votado da história. Ministro, enfrentou a tecnocracia europeia e o FMI, procurando demonstrar a inviabilidade do ajuste como exigido pela Troica. Convocou um referendo para avalizar a sua proposta alternativa. Saiu vitorioso das urnas, mas foi derrotado pela tecnocracia. O governo cedeu à Troica e Varoufakis voltou à academia e ao ativismo político. O seu livro, Adults in the Room, publicado em 2017, que resenhei para a revista Quatro Cinco Um, é uma fascinante incursão pelos bastidores das forças políticas do mundo contemporâneo.
A tragédia grega deste século XXI traz à cena todos os elementos do impasse da democracia contemporânea. Desde o início do século passado, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra, o mundo parecia ter encontrado a fórmula do progresso e da paz social. A democracia representativa liberal e a separação dos poderes davam a impressão de compatibilizar a vontade da maioria com a defesa dos direitos individuais e o respeito às minorias. Através de políticas compensatórias, o Estado, administrado por uma tecnocracia ilustrada, garantiria as condições mínimas de vida para os mais desfavorecidos. Nos países mais atrasados, o Estado exerceria ainda o papel de coordenador do desenvolvimento econômico.
Neste início de século, o equilíbrio entre os três elementos que compõem as democracias representativas - a vontade popular, o respeito aos direitos individuais e o governo tecnocrático - se rompeu. O populismo, tanto de direita como de esquerda, que hoje se alastra pelo mundo, deve ser entendido como uma reação à tomada de consciência de que a tecnocracia e as instituições liberais para a defesa dos direitos individuais se tornaram dominantes e abafaram a vontade popular. Tantos as razões desta tomada de consciência, como as implicações para o futuro da democracia têm sido objeto de inúmeros estudos e livros publicados nos últimos anos.
O populismo chega ao poder pelo voto, explorando a percepção de um déficit democrático, que foi acentuada pela internet e pelas mídias sociais. Primeiro, questiona as instituições liberais, depois desmantela a tecnocracia, para em seguida instaurar o autoritarismo. Não importa se a partir da esquerda, como na Venezuela, ou da direita, como na Turquia, na Polônia e nos EUA. Tanto a sua ascensão, quanto a sua capacidade de manter acesa a chama do ressentimento, dependem da frustração das expectativas. Por isso, o mau desempenho da economia, a recessão e o desemprego, são o combustível de que depende para solapar a democracia. Quando a economia se desorganiza mais rápido e profundamente, maior é a probabilidade do populismo descambar para o autoritarismo aberto. Confrontado com a perda de apoio, o populismo sobe o tom contra a política representativa, as minorias e as instituições liberais. A desorganização da economia, a recessão e o desemprego, se tornam um terreno fértil para a sua campanha de ressentimento.
No Brasil, depois de alguns meses do novo governo, a economia não dá sinais de que irá se recuperar. Continua estagnada, com a renda abaixo do que era há cinco anos e o desemprego acima de 12% da força de trabalho. O programa dos tecnocratas que estão no comando da economia parece estar condicionado à aprovação da reforma Previdência, uma reforma há décadas mais do que necessária, mas na qual não faz sentido depositar todas as esperanças. Transformada num cavalo de batalha com o congresso, insistentemente bombardeada como imprescindível pela mídia, a reforma da Previdência, ainda que aprovada sem grande diluição, como os resultados não são imediatos, não será suficiente para resolver o problema fiscal dos próximos anos. Também não será capaz de despertar a fada das boas expectativas. Como demonstra de forma dramática a experiência recente da Grécia, a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, quando há desemprego e capacidade ociosa, não apenas agrava o quadro recessivo, como termina por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB.
A Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao programa de austeridade fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente ainda mais altos. No Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida. O liberalismo econômico do governo parece estar subordinado ao seu dogmatismo fiscal. Como liberalismo e dogmatismo são incompatíveis, o liberalismo sairá inevitavelmente derrotado. No século passado, o dogmatismo monetário derrotou o liberalismo econômico de Eugênio Gudin. Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal.
No início da década, a Grécia se viu obrigada a fazer um extraordinário ajuste fiscal. Tendo sido beneficiada pela condição de membro da União Europeia, o que lhe permitiu financiar sua dívida a juros baixos, a Grécia tinha sido fiscalmente irresponsável. Com a crise financeira de 2008, a realidade bateu à porta. Os mercados, sempre dispostos a absorver mais dívida quando a maré está alta, com o refluxo, secaram. O aumento do prêmio de risco cobrado pelos bancos tornou a dívida, além de muito alta, também muito onerosa.
Yanis Varoufakis, à época um professor visitante na Universidade do Texas-Austin, foi o primeiro a afirmar o que qualquer pessoa com uma noção básica de aritmética poderia constatar: a dívida grega era impagável. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, a Troica, preocupados com o impacto sobre o sistema bancário, decidiram entender que não, que a Grécia deveria fazer um drástico ajuste fiscal e refinanciar a dívida. O ajuste foi feito. O déficit, de mais de 10% do PIB em 2010, foi revertido. Em 2017 a Grécia, a Alemanha, a Dinamarca e a Suécia, eram os únicos países da União Europeia com superávit fiscal.
O resultado pode ser avaliado por alguns números. O desemprego, que já era alto antes do início do ajuste, quase de 10%, três anos depois chegou a 28% da força de trabalho e a mais de 60% entre os jovens. No ano passado o desemprego ainda estava perto de 20% e o PIB tinha caído mais de 30% em relação a 2010. A dívida, que era equivalente a 150% do PIB em 2010, depois de quase uma década de ajuste, chegou a 180% do PIB. Mas os números, por mais impressionantes que sejam, não podem exprimir a dimensão da verdadeira tragédia que se abateu sobre a Grécia. O país foi destroçado.
Em 2015, depois de três anos de ajuste fiscal, a população exprimiu sua rejeição ao estrangulamento econômico a que o país estava sendo submetido. Um novo partido de esquerda, o Syriza e seu jovem lider, Alex Tsipras, venceram as eleições. Varoufakis foi convocado para ser o ministro da fazenda e renegociar a dívida. Condicionou a sua aceitação a ser eleito para o congresso. Sem jamais ter exercido qualquer cargo público, em menos de três meses de campanha, foi eleito o deputado mais votado da história. Ministro, enfrentou a tecnocracia europeia e o FMI, procurando demonstrar a inviabilidade do ajuste como exigido pela Troica. Convocou um referendo para avalizar a sua proposta alternativa. Saiu vitorioso das urnas, mas foi derrotado pela tecnocracia. O governo cedeu à Troica e Varoufakis voltou à academia e ao ativismo político. O seu livro, Adults in the Room, publicado em 2017, que resenhei para a revista Quatro Cinco Um, é uma fascinante incursão pelos bastidores das forças políticas do mundo contemporâneo.
A tragédia grega deste século XXI traz à cena todos os elementos do impasse da democracia contemporânea. Desde o início do século passado, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra, o mundo parecia ter encontrado a fórmula do progresso e da paz social. A democracia representativa liberal e a separação dos poderes davam a impressão de compatibilizar a vontade da maioria com a defesa dos direitos individuais e o respeito às minorias. Através de políticas compensatórias, o Estado, administrado por uma tecnocracia ilustrada, garantiria as condições mínimas de vida para os mais desfavorecidos. Nos países mais atrasados, o Estado exerceria ainda o papel de coordenador do desenvolvimento econômico.
Neste início de século, o equilíbrio entre os três elementos que compõem as democracias representativas - a vontade popular, o respeito aos direitos individuais e o governo tecnocrático - se rompeu. O populismo, tanto de direita como de esquerda, que hoje se alastra pelo mundo, deve ser entendido como uma reação à tomada de consciência de que a tecnocracia e as instituições liberais para a defesa dos direitos individuais se tornaram dominantes e abafaram a vontade popular. Tantos as razões desta tomada de consciência, como as implicações para o futuro da democracia têm sido objeto de inúmeros estudos e livros publicados nos últimos anos.
O populismo chega ao poder pelo voto, explorando a percepção de um déficit democrático, que foi acentuada pela internet e pelas mídias sociais. Primeiro, questiona as instituições liberais, depois desmantela a tecnocracia, para em seguida instaurar o autoritarismo. Não importa se a partir da esquerda, como na Venezuela, ou da direita, como na Turquia, na Polônia e nos EUA. Tanto a sua ascensão, quanto a sua capacidade de manter acesa a chama do ressentimento, dependem da frustração das expectativas. Por isso, o mau desempenho da economia, a recessão e o desemprego, são o combustível de que depende para solapar a democracia. Quando a economia se desorganiza mais rápido e profundamente, maior é a probabilidade do populismo descambar para o autoritarismo aberto. Confrontado com a perda de apoio, o populismo sobe o tom contra a política representativa, as minorias e as instituições liberais. A desorganização da economia, a recessão e o desemprego, se tornam um terreno fértil para a sua campanha de ressentimento.
No Brasil, depois de alguns meses do novo governo, a economia não dá sinais de que irá se recuperar. Continua estagnada, com a renda abaixo do que era há cinco anos e o desemprego acima de 12% da força de trabalho. O programa dos tecnocratas que estão no comando da economia parece estar condicionado à aprovação da reforma Previdência, uma reforma há décadas mais do que necessária, mas na qual não faz sentido depositar todas as esperanças. Transformada num cavalo de batalha com o congresso, insistentemente bombardeada como imprescindível pela mídia, a reforma da Previdência, ainda que aprovada sem grande diluição, como os resultados não são imediatos, não será suficiente para resolver o problema fiscal dos próximos anos. Também não será capaz de despertar a fada das boas expectativas. Como demonstra de forma dramática a experiência recente da Grécia, a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, quando há desemprego e capacidade ociosa, não apenas agrava o quadro recessivo, como termina por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB.
A Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao programa de austeridade fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente ainda mais altos. No Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida. O liberalismo econômico do governo parece estar subordinado ao seu dogmatismo fiscal. Como liberalismo e dogmatismo são incompatíveis, o liberalismo sairá inevitavelmente derrotado. No século passado, o dogmatismo monetário derrotou o liberalismo econômico de Eugênio Gudin. Neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar também nossa frágil democracia liberal.
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