O tom é sempre jocoso, mas virou lugar-comum dizer que o Brasil não é para amadores. As explicações para diversos fenômenos estão longe do óbvio. Há um bom tempo nos conformamos com resultados medíocres. Aprendemos a conviver com um fracasso depois do outro, e com perda de entusiasmo.
O imbróglio da Eletrobras retrata muito bem essa característica comportamental. Para os que se habituaram a mamar nas tetas da Eletrobras, a decisão do governo de privatizá-la é vista como apressada. Se bem-feita, segundo esses habitués, com "nova modelagem", permitiria a arrecadação de mais dinheiro. Parece um bom argumento. Porém, esses mesmos entusiastas do apadrinhamento político, com o qual se casaram há meio século, bradam que a pressa do governo é apenas para encher seus cofres. Em outras palavras, o "argumento" de arrecadar mais só é válido para quem se aproveita da Eletrobras.
E o mais grave é que o Judiciário se impressiona com esses e outros argumentos, como o mais absurdo, o de que o rio São Francisco estaria sendo vendido. Talvez nem o Padim Ciço, quase uma divindade, acreditaria em tamanha criatividade argumentativa, que de tão absurda se aproxima de uma blasfêmia, ou uma ofensa à própria divindade. No caso em discussão, a Justiça Federal de Pernambuco, em episódio depois superado pelo Supremos Tribunal Federal, ao excluir da Medida Provisória 814 o dispositivo que cuida da privatização, manteve todos os demais, isto é, os que apenas repassam custos para os consumidores. Nem os defensores das indicações políticas esperariam tamanho agrado.
O que poucos querem entender (ou procuram esconder) é o que de fato acontece com a empresa e suas (des)controladas. Só uma delas, a do Estado do Amazonas, tinha, em 2016, uma dívida líquida que ultrapassava R$ 20 bilhões, quando sua receita líquida anual era de R$ 2,6 bilhões.
Em meados de 2016, quando se discutia os efeitos da MP 735, a Eletrobras informou à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que a distribuidora precisaria de um aporte de mais de R$ 20 bilhões, em virtude de suas dívidas com fornecedores de combustíveis. Para que se tenha uma noção relativa desses números, o patrimônio líquido da Eletrobras, em 2016, era de pouco mais de R$ 44 bilhões. Isso implica que a dívida de uma de suas empresas, cuja receita corresponde a menos a 4% da receita de sua controladora, pode absorver quase a metade do capital social desta, o que é mais do que uma temeridade financeira.
Com efeito, o patrimônio líquido e o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) da Amazonas Energia, em 2016, eram negativos em R$ 9,6 bilhões e R$ 2,7 bilhões, respectivamente. Se não fosse uma empresa protegida pelos deuses da estatização e da mediocridade, há muito teria sido objeto de uma intervenção. Por essas e outras o valor da referida empresa seria negativo em mais de R$ 10 bilhões, já em 2016, o que deve ter piorado. São esses custos que são empurrados ano após ano para os consumidores, aumentando as tarifas e eliminando a competitividade da indústria, o que cria dificuldade para a criação de empregos.
Segundo o próprio MME, só com suas participações em empreendimentos como as hidrelétricas de Santo Antônio, Jirau e Belo Monte, a dona das divinas tetas teria perdido mais de "duas dezenas de bilhões de reais", e ainda teria que sustentar mais do que 170 empresas de propósitos específicos (SPE), com suas sagradas diretorias e conselhos. Trata-se, então, de uma empresa com situação financeira insustentável, com dívida quase dez vezes maior do que o Ebitda, o que significaria uma organização insolvente.
Por que, mesmo assim, tantos querem mantê-la como tal, ou seja, como uma empresa que só agrega custo, que já não traz mais quaisquer benefícios para os consumidores? Em recente carta aberta, um documento histórico para o setor elétrico, José Luiz Alquéres detalha com precisão cirúrgica o quanto é deprimente o processo de indicação e escolha de diretores e conselheiros para a Eletrobras e suas subsidiárias, cujo escrutínio é quase que exclusivamente político. Ele é também preciso ao destacar possíveis efeitos, em demandas de acionistas minoritários, da gestão temerária das distribuidoras do grupo Eletrobras e daquelas 170 SPE referidas acima. Seria um desastre para o controlador se os minoritários viessem a exigir direito de recesso a valor patrimonial. Temos, nesse contexto, um cenário que requer urgência, muita urgência.
Porém, apesar de todos esses ótimos argumentos, Alquéres defende um processo mais complexo, moroso e preguiçoso de privatização, com cisões por segmentos, por regiões e por bacias hidrográficas. Provavelmente não tenha levado em conta o volume de decisões de diretoria, de conselhos, de assembleias gerais, abertura de balanços e outros detalhes, o que é um prato-cheio para os adoradores da teta. É um processo que levaria no mínimo 2 anos.
A proposta atual do MME é relativamente simples (aumento do capital na holding, com a pulverização do controle por meio de ações negociadas na Bolsa), por isso bem mais rápida de ser executada, apesar de gerar menor valor para o controlador atual. Mas ela é compatível com a urgência requerida, dados os riscos que mencionei alhures.
Ao contrário do que diz os versos da canção de Caetano Veloso, a vaca profana, no caso a Eletrobras, já não consegue escolher em qual cara vai derramar o leite bom, se na minha ou na dos caretas. Dali, nos termos políticos que prevalecem há 20 anos, não há o menor perigo de ser extraído leite bom. A vaca há muito deixou de ser sagrada.
Se na década de 70 e 80 a Eletrobras era vista como um templo, este já foi profanado, restando ali os piores exemplos de gestão financeira da coisa pública, apesar dos esforços atuais. A privatização da Eletrobras já não é um problema ideológico ou simples artimanhas neoliberais. Ela é única solução para um gravíssimo problema financeiro, com custos bilionários para o consumidor de energia ou para o contribuinte.
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