FOLHA DE SP - 02/11
O naufrágio da delação dos donos e executivos da J&F, a aparente defesa de interesse deles por procurador da República quando ainda integrava a Lava Jato, o malogro da delação de Delcídio do Amaral, além da concessão de prêmios nada razoáveis a delatores, como é o caso da pena que Sérgio Machado cumpre em mansão à beira-mar, trouxeram dúvidas a respeito do instituto da delação premiada.
Surpreende-me que os questionamentos se limitem ao debate sobre a necessidade de melhor regulação do instrumento processual, quando, na verdade, as chagas expostas deveriam apontar para sua extirpação do ordenamento.
Antes de mais, vale informar que não se trata de mecanismo há muito em uso no direito brasileiro.
Ainda no Império, as Ordenações Filipinas autorizaram que o traidor de Tiradentes pudesse assistir de longe ao enforcamento e esquartejamento do alferes. A legislação penal republicana repeliu a delação premiada, até que, no fim do século 20, a reinserimos para o combate ao tráfico de entorpecentes e à extorsão mediante sequestro.
Nesses casos graves, digo logo, pouco se ouviu falar em delações.
A Lei 12.850, de 2013, robusteceu a disciplina da delação, dando impulso à concessão de prêmios a delatores. Pouca notícia há de que o instrumento tenha valido para desbaratar grupos de traficantes, mercadores de armas ou para colocar em prisões organizações perigosas de ladrões de banco, por exemplo.
Utilizamos a delação para atacar a corrupção, em que o traço de violência se restringe ao discurso dos procuradores, que dizem que os valores desviados de cofres públicos matam porque o pobre não tem atendimento de saúde adequado.
Se os recursos não tivessem sido desviados, os aparelhos de saúde seriam de outro mundo...
Fosse assim tão simples, os procuradores deveriam denunciar corruptos e corruptores pelas mortes havidas nos hospitais públicos, em vez de conchavar-se com os ladravazes, não? Mas a prática brasileira tem mostrado concessão de impunidade total ou parcial a bandidos que chegam a bom termo com o Ministério Público.
Fizemos da Lava Jato um patrimônio nacional. Qualquer palavra que se diga contra seus métodos faz do argumentante traidor da pátria, amante do malfeito, quando, na verdade, quem dá mãos ao crime, na forma de concessão de benesses a criminosos, não é quem expõe os problemas do instituto.
Note-se que o Brasil, hoje, não mais espera pela descoberta de um crime, com a punição do criminoso, depois do devido processo legal.
Estamos hipnotizados pela dinâmica de impor prisão temporária ou condução coercitiva, ameaçar transformá-las em preventiva, conseguir delação e partir para a próxima condução coercitiva, enquanto escondemos a ineficiência do sistema, revelada pela desconstrução da delação de Delcídio, ao lado da leniência com o malfeito, escancarada pela imunidade outorgada a Joesley e companhia e ao prisioneiro à beira-mar Sérgio Machado.
Nesse meio do caminho, dignidades são destruídas, muita vez injustamente, o que poderia ser evitado se as autoridades voltassem a investigar em vez de se limitarem a apostar nas próximas delações.
O problema não é de falta de regulamentação, mas de princípio: a traição que integra a essência do instituto da delação, ao ser adotada pelo Estado para premiar quem praticou crime, corrompe o sistema penal e a própria sociedade —que não percebe que, desde os tempos da vovó, a traição não é conduta a ser incentivada por prêmios.
ROBERTO SOARES GARCIA, 46, advogado criminal, integra a defesa do presidente Michel Temer e atuou como advogado de acusados da Odebrecht na Operação Lava Jato, sem ter participado de acordos de delação firmados; foi vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e coordenador da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP
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