De repente, os economistas brasileiros descobriram que as benesses distribuídas a determinados grupos estão na raiz da má distribuição de renda no Brasil. É uma iniciativa bem-vinda. Coloca foco em práticas sedimentadas desde o período colonial, reforçadas nos 67 anos do Império e perpetuadas a partir da República Velha. Com a particularidade de subsistirem em meio ao processo de modernização econômica do século XX.
Tratar da mesma forma o público e o privado, sem distinção, é uma característica dos regimes absolutistas, onde predomina o Estado patrimonialista. A República brasileira, a despeito do avanço das instituições, manteve ao longo dos anos um pé no patrimonialismo, favorecendo os privilégios a determinados grupos sociais, via de regra nos segmentos de maior renda, em detrimento do progresso da sociedade como um todo.
A corrupção, como se sabe, facilmente frutifica naquele tipo de conjugação, mas vamos primeiro tratar da preferência por "poucos" e os sinais de subdesenvolvimento que fazem do Brasil um país desigual, basicamente atrasado em aspectos que são hoje fundamentais no processo de desenvolvimento: a melhoria do padrão de vida, o aumento da produtividade, a construção de um mercado robusto e a imparcialidade institucional.
O fosso educacional é o pecado número um. Sempre lembrado, estudado e debatido, tem se reduzido muito lentamente nos últimos anos. Até parece que a elite brasileira, apesar do discurso, prefere manter o status quo eternamente. O medo de perder privilégios alimenta as garras de influência sobre o poder político.
Chega a ser incompreensível que um país com gasto educacional equivalente a 5,4% do PIB, um dos mais altos do mundo, registre mais de 50% da população entre 25 e 64 anos de idade com educação secundária incompleta.
O Estado brasileiro gasta, em média, US$ 3,8 mil por estudante nos cursos primário e secundário, enquanto que a média dos países da OCDE é de US$ 8,7 mil por estudante do primeiro grau e de US$ 10,1 mil do segundo grau. Na educação terciária (nível universitário) o gasto médio no Brasil é de US$ 10,6 mil por estudante, muito próximo da média dos países.
Os dados são da série "Education at a Glance", de 2017, (Educação ao Primeiro Olhar), anualmente divulgada pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento da Economia).
Além da educação estar longe da qualidade recomendável nos níveis do ensino fundamental e secundário, a distorção do sistema educacional brasileiro é gritante quando se compara com o gasto nas universidades públicas, gratuitas. Sustentadas com dinheiro do contribuinte, são frequentadas majoritariamente por alunos com renda alta. Esse é um dos privilégios que subsiste na sociedade.
Outro aspecto é o elevado nível da tributação no país, semelhante a de países desenvolvidos, e o descompasso revelado pela precariedade dos serviços públicos, não só na educação, mas também na saúde e na segurança. Pior, além de ser obrigada a sujeitar-se a imensas filas no SUS e de ficar cada vez mais refém dos bandidos que atuam nas comunidades e favelas, os mais pobres são os que pagam, relativamente, mais impostos no país. Isto pela predominância dos impostos indiretos.
Há ainda os casos conhecidos dos privilégios dos aposentados do setor público, sem falar nos altos salários das diversas esferas de governo e nos benefícios distribuídos a senadores e deputados como verbas adicionais, moradia gratuita etc...
A lista dos privilégios é imensa e se perpetua pela falta de transparência fiscal, pelas exigências burocráticas que concentram o poder na mão de poucos e pela inépcia das classes mais baixas que, por desinformação e falta de preparo educacional, não cobram dos políticos a melhoria dos serviços públicos pelo qual pagam boa parte de sua renda na forma de tributos.
Falou-se acima que a corrupção tende a florescer em sistemas paternalistas. No fundo, está tudo junto e misturado. Um recente estudo publicado no blog do FMI revela que quanto mais alta a corrupção, mais alta é a desigualdade de renda. A correlação é direta e estreita.
David Lipton, primeiro vice-diretor gerente do FMI, Alejandro Werner, diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental, e Carlos Gonçalves, economista do Departamento de Pesquisa, dedicaram-se a levantar indícios de corrupção, maior ou menor, nos países latino americanos em comparação com outras regiões no estudo "Corruption in Latin America: Taking Stock" (Corrupção na América Latina: Fazendo um Inventário), publicado há seis dias.
Eles estimam que a redução nos níveis de corrupção que afetam desde o quartil mais baixo (em termos de renda) até a mediana (média da renda da população) poderia elevar a renda per capita na América Latina em torno de U$ 3 mil, acima da renda média correspondente. Admitem, no entanto, a dificuldade em mudar um padrão de comportamento que se solidificou ao longo de anos.
Em seu livro "A Nova Sociedade Brasileira", o sociólogo Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, faz uma análise do patrimonialismo no Brasil e de como evoluiu, adaptando-se aos processos de urbanização e ao avanço do capitalismo. "A legitimação do Estado brasileiro, na segunda metade do século XX, fundou-se basicamente na sua capacidade de gerar crescimento econômico, com descaso pelas dimensões sociais, em particular a educação e a saúde", escreve ele, acrescentando que "o esforço de racionalização do Estado nunca chegou a livrar-se do patrimonialismo".
A imbricada relação entre o público e o privado, tão pouco estudada no Brasil, explicitou-se com a Operação Lava-Jato. A pergunta é o que virá depois? Conseguirá o país por um fim no vício do patrimonialismo em prol de uma sociedade mais igualitária e próspera?
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