ESTADÃO - 07/09
Entendeu-se que há culpa em sua conduta e por isso deve responder perante a sociedade
Sempre se repete o velho ditado caipira segundo o qual a gente não deve brigar com quem usa saia, ou seja, mulher, padre e juiz. O ex-presidente Lula, com sua primariedade cultural e nada invejável educação, alguns meses atrás mandou o juiz Sergio Moro enfiar num determinado lugar o processo judicial no qual era investigado – e repetiu aquelas duas letras, tão conhecidas e sempre evitadas. Milhões de pessoas ouviram a frase, repetida várias vezes pelas rádios, televisões e pelos jornais.
Por essa ofensa, com certeza o exemplar magistrado não decairá de sua grandeza na hora de julgá-lo e sentenciá-lo, caso tenha havido descumprimento da lei. Mas, sem dúvida, Lula tem razões de sobra para estar com os nervos à flor da pele, pois bem sabe o tamanho da grosseria feita. Para sua sorte, o juiz não é igual a ele e por isso mesmo não se deve esperar um gesto de vingança, mas tão somente um julgamento como tantos outros.
Na relação processual entre o Estado e o réu, o juiz não é parte e por isso tem o dever de agir sempre com absoluta imparcialidade. As decisões de Sergio Moro às vezes podem mostrar-se por demais rigorosas, porém é necessário ter em conta que ele está submetido ao que dispõe a lei, ou seja, o juiz não deixa de ser a lei vivificada, que fala por sua pessoa.
Crimes de extrema gravidade praticados contra o Estado brasileiro e sua principal empresa, a Petrobrás, resultaram em decisões judiciais em favor da prisão de empresários e políticos extremamente rico e sem nenhum escrúpulo. Sempre se dizia que rico no Brasil não vai para a cadeia, e sim para Miami; mas agora, inaugurando uma fase bastante promissora de nossa história política e social, vê-se que dinheiro e poder não têm servido para retirar das grades os detentores de grandes fortunas.
Vê-se também que tanto faz para um juiz que o infrator seja a pessoa mais simples do planeta ou uma figura presunçosa e arrogante que se apresenta como o homem mais honesto do Brasil, ao mesmo tempo que não consegue explicar as razões de o dinheiro desviado da Petrobrás ter servido para reformar determinado apartamento no Guarujá e um sítio em Atibaia.
A relevância da conduta antijurídica pode estar não apenas na propriedade ou não desses dois imóveis, mas também na circunstância afrontosa de aceitar dinheiro sujo para reformá-los. Ainda que o imóvel possa ser de terceiros, se o nada educado ex-presidente usou tal dinheiro para reformar os imóveis, é claro que terá de responder por isso.
O pior para seu estado psicológico é que o juiz com competência e obrigação de julgá-lo poderá ser mesmo aquele a quem ofendeu grosseiramente, em público, numa torpe valentia. O inquérito policial que indiciou Lula por vários crimes corre pela Justiça Federal e está umbilicalmente vinculado à Operação Lava Jato.
O inconformismo do ex-presidente e o seu rancor contra Sergio Moro ganharam expressão quando foi coercitivamente levado para depor, no contexto da Operação Alethéia (24.ª fase da Lava Jato), acompanhado de policiais federais. Na verdade, tratava-se de um ato de rotina, porque quando o juiz pretende ouvir algum investigado, mas pressente que ele poderá fugir ao ser oficialmente intimado para depor em determinada data, é normal optar pelo comparecimento coercitivo.
Esse procedimento é frequente e, no caso de com Lula, repita-se, tratou-se de um ato de rotina, sem representar nenhuma afronta à sua vida de político e de ex-presidente da República, tampouco qualquer perseguição pessoal. Afinal, todos são iguais perante a lei, mesmo presidentes ou ex-presidentes da República, porque igualmente amam, sofrem, choram, têm dor de barriga.
O poder moral do juiz e seu senso de justiça estão assentados na segurança que advém da lei e das normas de direito presentes na vida de uma nação. Nessa linha, o poder coativo da lei não permite desigualar pessoas, ainda que ostentem títulos e fortuna.
Reitere-se: sem decair de sua grandeza, o juiz Sergio Moro não se sentirá impedido de julgar alguém que procurou ofendê-lo ou outros desses políticos que pensavam ser donos do Brasil e enriqueceram com dinheiro sujo, ao mesmo tempo que o grau de pobreza da população brasileira a cada dia se mostrava maior.
O ato agressivo de Lula contra o direito, quando mandou o juiz enfiar o processo naquele lugar, faz lembrar o fenômeno do ciúme no amor, que muitas vezes se volta contra si mesmo e acaba por destruir aquilo que pretendia resguardar.
Como se divulgou, em inquérito policial levado a efeito pela Polícia Federal Lula foi indiciado, ou seja, entendeu-se que há culpa envolvendo a sua conduta e que por isso deverá responder perante a sociedade. O indiciamento não é um ato discricionário da autoridade policial, para ter validade jurídica deve se basear em provas suficientes para tal.
O propósito do Estado ao investigar e apontar o autor do delito tem por base a segurança da ação da Justiça e do próprio acusado. Há, em verdade, uma instrução prévia, pela qual a polícia judiciária reúne as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com razoável segurança, a ocorrência de um delito e seu autor.
A pessoa suspeita da prática de infração penal passa a figurar como indiciada a contar do momento em que, no inquérito policial instaurado, são claras as possibilidades de ser ela o agente responsável pelo delito. Depois do indiciamento, ainda que possa vir a ser absolvida, em sua folha de antecedentes sempre figurará a informação constrangedora.
Os crimes imputados a Lula são de ação penal pública. Isso quer dizer que o Ministério Público, pela Lei n.º 8.038/90, tem o prazo de 15 dias para oferecer denúncia ou pedir o arquivamento do inquérito.
*Desembargador aposentado do TJSP, foi secretário de justiça do Estado de São Paulo.
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